EM BUSCA DO TEMPO VIVIDO COM PROUST

Este ano eu fiz quarenta e oito anos e, desde então, eu me pego pensando sobre a meia idade. E quando eu olho em volta, eu fico tentando imaginar a idade das outras mulheres e homens e fico procurando sinais de meia idade. O que é a meia idade? Eu não consigo ver, não porque voluntariamente estou evitando olhar na cara da meia idade. Mas porque todos me parecem inteiros (e não meios) no pico do Evereste de suas vidas, até o momento que eles não estão mais. Eu não sei qual é o rito de passagem, se é que há um; eu não sei qual é o momento certo da meia idade, se é que podemos marcar no calendário. Eu só sei que há aprendizagens nesse percurso, o qual não pode ser feito por mais ninguém, mas nós mesmos.

"Vamos ser gratos às pessoas que nos fazem felizes, elas são charmosos jardineiros que fazem nossas almas florirem."

 Alain de Botton, um filósofo pop de origem suíça, escreve livros trazendo as intrigas filosóficas para o reino da vida cotidiana. Seus livros são interessantes e de uma leitura de inspiração fácil. Recentemente eu li o  livro Como Proust Pode Mudar a Sua Vida” que ele lançou em 1997 e que foi publicado no Brasil pela Editora Intrínseca em 2011. Alain de Botton apresenta Marcel Proust, autor da épica obra “Em Busca do Tempo Perdido,” aos leitores e depois detalha trechos de sua obra para nos dar algumas lições proustianas sobre essa imprevisível vida nossa de cada dia.

 Segundo Proust as aprendizagens da vida podem ser feitas de dois modos, de um modo é sem dor e através de um professor. O outro modo é dolorido e através da vida em si mesma. Ele sugere que este segundo modo é mais diverso, profundo e duradouro. Alain de Botton diz que Proust acreditava que a gente não aprende nada propriamente dito até aparecer um problema, até estarmos em dor, ou até algo não acontecer do jeito esperado. Nas palavras de Proust: Uma memória que não falha não é um incentivo poderoso para estudarmos o fenômeno da memória.”

"A verdadeira viagem de descoberta consiste não em buscar novas terras, mas em ter novos olhos."

 Proust, que era um clássico hipocondríaco, adorava ficar na cama, e é desse lugar que ele nos dá a receita de como sofrer: “Quando alguém está triste, é maravilhoso deitar-se no quente de sua própria cama, e lá, com todo o esforço e luta, e talvez com a cabeça embaixo das cobertas, entregar-se completamente ao lamento, como galhos que se movem no vento do outono.”

A gênese do meu sofrimento eu conheço.  É uma vontade de agarrar, de não se render comlpetamente às coisas, de ter controle do imprevisível.  Sofro porque sou inconformada com a natureza das coisas. Sofro porque quero ter certeza, quando tudo que me é oferecido são possibilidades e experiências impermanentes. Sofro porque quero impor permanência ao fluxo corrente. O desejo de fixidez me foi implantado como propriedade da felicidade.

 Proust, assim nos conta Alain de Botton, em uma carta à Madame Straus comenta de um protegido da madame: “Esse homem que é tão acético, tem certezas gramaticais. Ora, Madame Straus, não há certezas, nem mesmo as gramaticais [...] somente as coisas que carregam as marcas de nossa escolha, nosso gosto, nossa incerteza, nosso desejo e nossa fraqueza pode ser bela.”

 Com Proust dá para perceber que a beleza não vem da harmonia, da perfeição, da certeza, ou da retitude não duvidosa. Mas a beleza também vem do torto, do incerto, do fraco, das rugas, das varizes, das dúvidas que nos fazem inteiros. Isso não é um jeito de “abraçar a minha imperfeição,” porque isso é papo para vender cosméticos. Essa pérola proustiana me diz que minhas marcas, dúvidas e incertezas me fazem bela, porque eu sou elas.

 Se for a meia idade um grande e fofo colchão da vida, eu quero afundar-me nele cultivando flexibilidade e elasticidade para seguir em busca do tempo. Eu encaro ser feliz hoje com o estado de satisfação de tanto faz a chuva ou o sol. Sou feliz quando eu entendo o limite da minha influencia nos acontecimentos da vida e dou bem-vindas ao torto inesperado.

 Já deu para perceber por este blog, que eu me valho da arte para me elevar do mundano, e refugio-me e encontro-me nos livros e nas estórias que os livros contam. Proust assim falou da íntima conexão entre literatura e as nossas construções de nós mesmos:  Na realidade, todo leitor é, enquanto ele está lendo, o leitor dele mesmo. O trabalho do escritor é meramente um tipo de instrumento ótico o qual ele oferece ao leitor para possibilitar à este discernir o que, sem o livro, ele talvez nunca teria experimentado em si próprio.”

 E também assim falou do papel da arte: “Nossa vaidade, nossas paixões, nosso espírito de imitação, nossa inteligência abstrata, nossos hábitos há muito trabalham para nos forjar, é papel da arte, então, desfazer este trabalho.”

 Recomendo o livro “Como Proust Pode Mudar a Sua Vida” de Alain de Botton  (Editora Intrinseca) para uma leitura a qualquer hora do dia e da noite. Boa semana!

DIFERENTE BLUES!

Diferente Blues

 Geralmente eu tenho mais vontade do que real energia para ver um filme depois das 10 da noite. Costumeiramente, guiada pela maníaca vontade, eu tento me convencer que lógico que eu vou ficar acordada para ver o filme e, inevitavelmente, eu adormeço depois de quinze minutos de telinha e aconchego no sofá.

Em uma quinta-feira, sem nada mais interessante para ver na televisão, meu marido comentou displicentemente de um filme francês que ele havia colocado em nosso arquivo na internet. Vestida da vontade, eu pulei na oportunidade de assistir a um filme do tipo artístico-alternativo. Sem paciência que estou para os filmes americanos. Pelo avançar da hora, a aposta era que eu iria adormecer. Mas não foi isso que aconteceu quando eu me sentei para ver Azul É A Cor Mais Quente, do Tunísio  Abdellatif Kechiche. Minha expectativa era de ver um filme sobre o descobrir-se do jeito que é, abordando a sexualidade de adolescentes.  O filme foi isso. E muito mais!

 

O filme,  inspirado na História em Quadrinhos de mesmo nome da escritora francesa Julie Maroh, foge dos clichês, tanto comerciais e alternativos, e mostra a tristeza e as tensões da personagem Adele, vivida pela atriz Adele Exarchopoulos, navegando na arena do estar vivo e ser sexual, que no filme é a mesma coisa – e na vida representada pelas instituições são coisas separadas.

 

Adele descobre que tem desejos por garotas. Esta descoberta é mostrada no filme como um processo natural de perceber-se vivo. Não há atribuições de culpas ou julgamentos. Adele levada pela crescente curiosidade de seus desejos conhece a sua amante de cabelos azuis em um bar de lésbicas em Paris. As cenas de sexo de Adele e sua amante contêm toda a voracidade, avidade, sofreguidês natural e bem vinda do desejo pulsante. Apesar de apreciar a beleza e a natureza desta cenas, isso nem foi o foco do filme para mim. Quase documental, o filme detalha com proximidade porosa a vulnerabilidade de crescer neste mundo de tantos deuses. E mostra sem julgamentos e sem lições de moral diferentes estéticas do viver da contemporaneidade.

O mundo da adolescente Adele é permeado de ativismos políticos, de clássicas aulas de literatura e filosofia na escola pública de algum subúrbio de classe média-baixa das redondezas de Paris, como também, da estética jovem da conectividade em blue-jeans, e dos  valores da classe trabalhadora figurada no pai em camisa de colarinho azul claro (blue-collar) . Estética mostrada na família de Adele que janta macarronada sem diálogos, assistindo à algum programa popular de televisão, e toma vinho tinto sem cerimônia, mais como um analgésico do dia. Esta parece ser a rotina.

Com a namorada/amante de cabelos azuis uma nova estética é introduzida no filme. A da classe abastada intelectualmente e com privilégios financeiros. Na família de sua amante, uma aluna de artes visuais e aspirante a artista, Adele é introduzida como namorada. Na família de Adele sua sexualidade é escondida. Na família da amante de Adele, durante o jantar, há conversas sobre política, artes, humanidades, degustações culinárias e apreciações enólogas. Adele circula nesse mundo estranho ao seu apresentando, sem receios, vergonhas, ou julgamentos seus valores de classe trabalhadora. Quando interrogada pela mãe de sua amante no jantar, no qual ela experimenta ostras pela primeira vez, o que ela fará ao terminar o liceu, segundo grau, Adele responde que pretende formar-se professora, pois é a formação de um trabalho prático que garante emprego e sustento. Essa informação é recebida com desdém curioso por parte da estética de outras cores da família de sua amante. Diferentes blues!

Adele mesmo feliz é triste. Não se acanha de parecer e estar vulnerável aos imprevistos e desequilíbrios da vida. Adele crescendo com o seu medo estampado é refrescante de se ver – cansada que estou da cultura de documentar ao mundo, em redes internéticas, da vida sem vulnerabilidades.

A personagem Adele trouxe conexões e memórias.

O blues-azul também está na capa do livro de memórias do neurologista Oliver Sacks, famoso por seus livros anteriores que retrataram seus casos psiquiátricos estudados com profundada sensibilidade ao humano por está por trás do rótulo médico. Com uma carta publicada no New York Times em Fevereiro deste ano, Dr. Oliver Sacks anunciou que está com um câncer em metástase no fígado e que tem pouco tempo de vida. Nesse pouco tempo que lhe resta, ele em movimento contínuo escreve um livro de suas memórias, o qual foi lançado aqui nos EUA em abril com o título "On The Move - A Life" (tradução: Em movimento - Uma Vida). Eu ainda não terminei de ler o livro, mas uma parte tocante do livro é quando ele revela o conflito com sua própria homossexualidade, que foi recebida por sua mãe, quando ele ainda era adolescente com a afirmação: “Você é uma abominação. Eu desejo que você nunca tivesse nascido.” Isso marcou o jovem Oliver Sacks, que passou a sua vida adulta enfrentando a culpa de ser quem ele é. Uma biografia profundamente reveladora e transformadora que vale a pena ler quando chegar no Brasil

Veja o Dr. Oliver Sacks na capa de seu livro com sua moto em 1961 in Greenwich Village.

Com a Adele do filme, lembrei-me da minha adolescência na periferia de Belém. Atravessando a fronteira da periferia para o centro da cidade onde negociaria a vida com intelectuais, artistas, e alguns privilegiados em geral. Sentia medo, vergonha, humilhação, alegria e dor. Ria silenciosamente da falta de noção de quem morava no centro do quê era a vida nos bairros populares. Adorava a tranquilidade e limpeza da vida dos apartamentos do centro da cidade. Na minha cabeça, cada dia da minha adolescência era um jazz cheio de surpresas.

Depois de ficar acordada até quase uma hora da madrugada vendo o filme Azul É A Cor Mais Quente, acordo com sono e com alegria. As imagens do filme ainda vivas em minha mente entoam um blues melancólico e poético que vem do sul, juntamente com um blues dissonante e eletrificado do norte. E eu? Eu saltito, em diferente blues! Rock me baby !!!!

 

Em homenagem ao rei: Que descanse em blues celeste B.B. King!

“EU JÁ TINHA TE FALO!”

“EU JÁ TINHA TE FALO!”

 

Quando eu comecei a escrever esse blog, foi porque além de estar escrevendo um livro que tem a ver com a minhas memórias, eu comecei a ler muito outros autores que escreveram sobre suas memórias. E disso tudo surgiu um desejo meu de compartilhar com mais gente essas leituras e de conversar sobre esses livros que bravamente tem seus autores como personagens e narradores de suas próprias estórias.

Uma escritora descoberta por acaso e que me causou grande impacto foi a italiana Natalia Ginzburg. Primeiro eu li um pequeno texto de três páginas publicado em uma antologia, e isso foi o suficiente para que eu revirasse a biblioteca de Brookline, cidade onde eu moro, procurando por mais. Queria livros inteiros dela. Queria passar o dia inteiro consumindo a escrita de Natalia Ginzburg, era o meu desejo.

Natalia Ginzburg nasceu em 1916, foi escritora, editora, tradutora das obras de Proust, ativista política, membro do partido comunista Italiano e eleita membro do parlamento por este partido em dois mandatos. Desiludida com o partido, saiu e dedicou-se a causa das crianças palestinas, reforma nas leis de adoção e assistência às vítimas de estupro. Natalia Ginzburg morreu em 1991, foi o que me disse a orelha do livro dela. Não acreditei. Suas palavras estão vivas comigo e ignorei essa informação. Continuei lendo The Things We Used To Say que para nosso profundo deleite está traduzido e publicado no Brasil, pela Cosac Naify com o título muito bonito e apropriado de Léxico Familiar.

A edição italiana de Léxico Familiar em 1963

Natalia Ginzburg em casa

Em Léxico Familiar, Natalia descreve como um observador distante os ditos e feitos de sua família de classe média, intelectualmente bem posicionada.  A família de Natalia engajada no movimento de resistência ao fascismo de Mussolini, sobrevive a esse período e aos horrores da segunda guerra mundial com perdas e sequelas dramáticas. Mas sua narrativa não se exalta em enfeites com os dramas vividos, e isso é o encanto da virtuosidade desta escritora. Natalia descreve o cotidiano da família na qual a poesia, a literatura, o esporte e a ciência são peças usadas no dia-a-dia por todos, com despojamento e honestidade, elementos que despertaram em mim uma forte empatia. 

Ao descrever a forte personalidade de seu pai, um famoso acadêmico, de origem judia, que cria palavras e frases para dizer de coisas que ele desaprova nos outros, ela o faz com uma linguagem direta. Descreve com a mesma linguagem as brigas entre os irmãos, os ciúmes da mãe em relação às amigas da filha velha, o aprisionamento do pai e dos irmão e, mais tarde, do marido que sofre torturas e morre na prisão. Ela também descreve a mãe, mulher de formação socialista, que expressa seus entendimentos do mundo pelas frases e ditados ditos pelas pessoas que passaram pela sua vida.  Essas frases ditas e inventadas fazem parte do fraseado da família e lhes confere a liga que os une, assim como os valores que compartilham.

"Somos cinco irmãos. Vivemos em cidades diferentes, alguns de nós no exterior, e não nos escrevemos com frequência. […] Mas basta, entre nós, uma palavra. Basta uma palavra, uma frase: uma daquelas frases antigas, ouvidas e repetidas infinitas vezes, no tempo da nossa infância. […] Uma daquelas frases ou palavras faria que nos reconhecêssemos no escuro de uma gruta, entre milhões de pessoas. Aquelas frases são o nosso latim, o vocabulário dos nossos dias passados, são como os hieróglifos dos egípcios ou dos assírio-babilônicos, o testemunho de um núcleo vital que deixou de existir, mas que sobrevive ... salvos da fúria das águas, da corrosão do tempo."

Neste universo tão distante no tempo e na geografia da minha própria vida, eu me encontro. Eu me vejo com a minha família dividindo o palavreado que nos é tão familiar e que fala de nossas estórias. Acho que todas as família têm seu fraseado interno particular.

Mesmo vivendo por muitos anos distante, basta que algum dos meus irmãos e irmãs digam, Égua moleque, uma broca é uma broca, duas brocas é uma fome!”[1] ou me lembrem da ameaça do “Vai, só te digo vai!”[2]  uma simples frase do nosso dito familiar, para que surja uma forte conexão entre nós, lembrando-nos das experiências partilhadas. Se algumas horas atrás eu não conseguia sentir o que me ligara à essas pessoas, depois de ouvir algumas frases e expressões, a familiaridade e cumplicidade torna-se presente, levando-me a compreender o que é família: essa cola que nos liga.

O livro Léxico Familiar de Natalia Ginzburg me instiga a pensar que os laços familiares não são fortes porque há uma genética comum entre os membros. Mas como então?[3]  São fortes e profundos porque esses laços foram feitos dentro de uma linguagem que os configurou. Os laços dos ditos e feitos familiares são comunhões simbólicas. Eu já tinha te falo,”[4] como alertava em concordância a minha mãe.

Eu, meus irmãos, minhas irmãs e um primo ainda bebê.

Para mim foi impossível ler o livro de Natalia e não lembrar da casa dos meus pais cheia de meninos e meninas, amigos meus e de meus irmãos e irmãs, tentando passar as horas de calor intenso de Belém inertes na frente da televisão, e minha mãe desligando o aparelho e mandando todo mundo ir procurar o que fazer pois cabeça vazia é oficina do diabo.” Ou a tristeza de ver o final de semana acabar no domingo a noite com minha dizendo que era hora de dormir porque amanhã é dia de branco.”  Eu acho que ela tirou essa frase do tempo em que ela trabalhava como lavadeira. Ou, o temperamento explosivo de meu pai que dizia para a molecada ficar longe das coisas dele, porque ele dizia: “eu não me engasgo com elefante, mas me engasgo com uma formiga.” Ou ainda da minha mãe contando de uma traição de uma conhecida dela  afirmando “ eu tenho um pé de cá-te-espera plantado,” sinalizando que ela aguardaria a conhecida retornar pedindo ajuda para devolver-lhe o insulto. Ah, como essas frases me transportam para um outro tempo! Pira paz não quero mais![5]

O Léxico Familiar é um livro biográfico, mas como a memória é escorregadia, é também um romance. Leia-o como quiser, mas por favor, leia!

 Você tem frases que só à tua família pertence? Quer compartilhar e nos dizer? Então diz nos comentários. 

Léxico Familiar de Natalia Ginzburg, foi publicado pela editora Cosac Naify, 2010.

Gente, quem quiser receber por e-mail semanalmente as postagens deste blog, é só subscrever via e-mail lá embaixo perto do quadrado para comentários. Fica mais fácil desse jeito a nossa comunicação. Beijos!!!!

 

Expressões Paraenses Usadas Neste Texto:

[1] Dito para enfatizar um estado de faminto.

[2] Expressão de ameaça das mães para o filho que desobedece.

[3] Expressão de que não entendeu e pede para explicar.

[4] Enfatizando que um aviso já tinha sido feito.

[5] Significa parar de fazer o que estava fazendo.

QUE SE REPITA ATÉ O FIM!

Em Novembro do ano passado eu viajei para ficar oito dias com o meu pai que estava internado na UTI de um hospital de Belém. Os médicos lhe davam antibióticos na veia para conter uma pneumonia. Seu corpo fraco e curvado, seus olhos pequenos e puxados, como os olhos dos índios da região, não se abriam com agilidade e nem com foco. Suas mãos calejadas, de pele dura, falanges enrugadas e  grossas estavam com ataduras para garantir que a agulha do soro não saísse da veia. Uma mão já estava inchada e não poderia ser mais usada. Suas veias estavam ficando finas, assim como a sua existência se afinava diante de mim.

Mas ele exibia melhoras e exibia vontade de comer peixe e voltar pra casa. No dia seguinte ele foi liberado para continuar o tratamento com os antibióticos em casa. Mais humano desse jeito, penso eu. Apesar de ele ter Milena, que cuida dele em casa enquanto minhas irmãs e irmãos trabalham, eu disse que cuidaria dele naquela semana. Ele ainda se lembrava de mim e eu precisava me agarrar nessa presença para me entender no presente.

Acordava de manhã e ajudava minha irmã no ritual de trocar-lhe a fralda, vesti-lo em roupas limpas e secas, trocar os lençóis da cama, leva-lo até a mesa para servir-lhe um mingau espesso e morno em pequenas colheradas, depois sentava com ele na poltrona pegando o sol da manhã que entrava pela janela da sala e lia-lhe o jornal ou puxava conversa. Eu fiz essas mesmas ações com meu filho quando ele era um bebê, e ali eu as repetia com meu pai. Ambos vulneráveis. Ambos  vivendo o momento presente. Mas meu filho acumulava memórias. Meu pai perdeu as suas.

Meu pai em sua lambreta cerca de 1950

Noivado de minha mãe e meu pai no inicio dos anos 50.

Meu pai tem 86 anos e há mais de quinze anos foi diagnosticado com Alzheimer, doença que é responsável pela maioria dos caso de demência na velhice.

 Jake, personagem do livro The Wilderness de Samantha Harvey (Espaços em Branco), arquiteto britânico, perto dos setenta anos também foi diagnosticado com Alzheimer. Em uma passagem do livro na qual Jake encontra a filha que não ele não via há anos e lhe conta da sua doença e a filha lhe diz que está esperando um filho, então ele acorda no dia seguinte e diz não saber se aquele encontro realmente existiu. Com profunda angustia o personagem se diz preso e acorrentado ao presente, pois sem o futuro e com o passado embaralhado na memória ele não tem mais nada.

 De longe vi meu pai embaralhar os eventos na cabeça e confundir as pessoas. Aí ele começou a esquecer. Esqueceu de dar dinheiro para a feira. Esqueceu que tinha um carro. Esqueceu de tomar remédios. Esqueceu da mulher. Esqueceu dos filhos. Esqueceu dos netos. Esqueceu da fidelidade da mulher e lhe inventava amantes. Esqueceu onde era o banheiro da casa que construiu com as próprias mãos. Aos poucos ele foi deixando de ser.

 

Meu pai, sua primeira neta, e eu em 1996 quando ele foi diagnosticado com Alzheimer

Meu pai em 1997 em uma roda de samba

 

A literatura, as estórias humanas narradas com sensibilidade, nos fazem entender o drama da vida cotidiana. Quando eu li o Leite Derramado de Chico Buarque, eu pude compreender a insuportável agonia do meu pai. No livro de Chico o narrador é Eulálio um homem de cem anos que internado em um pobre abrigo para velhos tenta buscar pedaços da sua memória, da sua estória, antes de ele deixar de ser. Sem memória não somos.

“[...] E debaixo do banho observei meu corpo fremente, só que neste momento minha cabeça fraquejou, não sei mais de que banho estou falando. São tantas as minhas lembranças, e lembranças de lembranças de lembranças, que já não sei em qual camada da memória eu estava agora. Nem sei se eu era moço ou muito velho, só sei que me olhava quase com medo.” (p. 138-9)

 Sim, acumulamos estórias que nos dão densidade em camadas, como as camadas geológicas da terra nos diz da estória da evolução do planeta.

 “Pai, você lembra de quando tu conheceste a mamãe?” Puxo conversa enquanto ele toma sol sentado na poltrona.

“... Lembro.” Ele abre a boca, espera alguns longos segundos antes de falar devagar.

“Onde vocês se conheceram?”

“… hum… Na casa dela …”

“Tu sabias onde ela morava?”

“… sim.”

“Como tu sabias? Tu moravas perto?”

“… não. … eu morava com ela.”

“Tu moravas com ela? Como assim?”

“ … eu nasci lá …”

“Tu nascestes lá? Na casa da minha mãe?”

“… sim… eu nasci lá…dela … da minha mãe.”

Esse meu diálogo com meu pai, me lembra a seguinte fala do personagem do Leite Derramado:

“[...] A memória é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas. Não pode é alguém de fora se intrometer, como a empregada que remove a papelada para espanar o escritório. Ou como a filha que pretende dispor minha memória na ordem dela, cronológica, alfabética, ou por assunto.” (p.41)

 Eu era a filha impondo minha ordem e referência nas suas memórias. Que falta de sensibilidade a minha!

Eu e meu pai em Novembro de 2014

 Em um outro dia quando cuidava de meu pai, ele começou sentir muitas dores no braço onde entrava os antibióticos doloridos. Tirei-lhe o soro das veias, como o enfermeiro havia me ensinado, mas não sabia o que fazer para acalmá-lo. Daí eu lembrei-me do documentário Alive Inside: A Story of Music and Memory” (Vivo por Dentro: Uma Estória de Música e Memória. Existe no Netflix) que havia assistido alguns meses atrás. O documentário mostra a cruzada empreendida por um assistente social, Dan Cohen, já aposentado que dedica seu tempo livre a levar música para pacientes com Alzheimer em instituições focadas no internamento e medicalização dos velhos nos EUA. Dan coloca um par de fones de ouvidos em pessoas que pararam de existir e toca músicas que eram as preferidas dessas pessoas. A reação é viva, é linda, é vibrante, é emocionante! A música é a última de nossas memórias a morrer, segundo Oliver Sacks. Quando eu terminei de ver o documentário, eu comprei um par de fones de ouvidos e coloquei no correio para o meu pai. Então eu fui procurar o par de fone de ouvidos pela casa, encontrei-os e os coloquei nas suas orelhas com boleros de Reginaldo Rossi, canções de Nelson Gonçalves, sambas de Paulinho da Viola, Alcione e Martinho da Vila. Meu pai imediatamente relaxou, seus olhos abriram e sua mão começou a balançar no rítmo das músicas que ouvia. Em seguida ele começou a cantar! Eu tinha certeza que nesse momento ele lembrava das músicas e dos paços de dança. Adorava dançar! Tinha uma agilidade nos pés invejada e admirada.

Eu e meu pai em Novembro de 2014

Eulálio de o Leite Derramado de Chico Buarque, diz

“[...] Mas se com a idade a gente dá pra repetir certas histórias, não é por demência senil, é porque certas histórias não param de acontecer em nós até o fim da vida.”

 Eu não tenho a menor ideia o que acontece no pensamento do meu pai, que esta semana novamente retornou à UTI com infecção de urina e nos pulmões, mas eu espero que  as lembranças das músicas e danças que embalavam e davam alegria ao seu corpo não parem de se repetir até o fim.

 Preciosas obras literárias que tem Alzheimer na trama:

Leite Derramado, Chico Buarque, 2009, Cia das Letras

 Para Sempre Alice, Lisa Genova, 2009, Nova Fronteira (O filme com o mesmo título foi lançado no ano passado)

 The Wilderness, Samantha Harvey, 2009, Doubleday (tem tradução em Português europeu por uma editora de Portugal com o título de Espaços em Branco, 2010, Bertand Editora)

 

*** Que coincidência, todos os livros foram publicados no mesmo ano!

Acordei hoje com um radiante dia azul de sol e pensando no lamentável terremoto no Nepal.  Pareciam duas imagens que não se encontravam em um lugar comum. A sensação foi de desajuste, desordem, imperfeita.  Como ordenar o caos da vida?

Uma imagem do pintor Francisco Goya me veio a mente...

"O sono da razão produz monstros" Francisco Goya

 

Estou escrevendo um livro, e nesse eu escrevi um trecho que me veio a mente. Resolvi partilhar. Com fé e imaginação na nossa humanidade.

Entender a vida é realmente mais difícil do que entender as lições da escola. Não há modelos. Nada se enquadra nas fórmulas ensinadas. Nem mesmo Deus. Aliás se tem uma ideia mais fora de qualquer enquadramento, é a ideia de Deus. Mas há uma dedicação ferrenha de religiosos em legitimar a fé forçando um só jeito de entender Deus. Os cientistas publicam livros sobre coisas fantásticas como o “buraco negro,” ou “princípios da incerteza singular,” ou “relatividade.” Eles, os cientistas, conseguem viver dentro de um mundo de hipóteses e teorias imaginadas, sem segurança de certeza, sem verdades absolutas. Mas as pessoas religiosas acham que têm modelos e respostas certas para tudo.

Quem é que tem mais fé?

Por que a palavra fé foi significar justamente o seu oposto?

Os oito anos de escola de padres não me deram religião. Mas eu tenho fé. Eu tenho imaginação. É com fé que acredito na nossa humanidade e com imaginação que confio que podemos ter vidas  menos ofendidas.

Fecho os olhos. Respiro. Respiro. Respiro. 

ELA ME AMOU E PRONTO!

Ela me amou e pronto!

 

Em 2012 eu tive um abcesso no útero que explodiu dentro de mim e me levou a ficar oito dias hospitalizada, meses de tratamento com antibióticos que bagunçaram meus hormônios, causaram problemas na tireoide e  alguns cistos nos ovários. Essa temporária desordem levou-me a investigar meu estar no mundo, minha relação com as pessoas e as coisas que comia, ouvia, bebia, tolerava, não tolerava, admirava, repugnava, empreendia tempo e doava espaço. Para investigar essas coisas todas eu comecei a fazer meditação Zen Budista, aulas de Yoga e terapia. Voltar para dentro de mim mesma foi o jeito que encontrei de encarar terrores que me causavam tremores. Em uma das sessões de terapia com a inteligente, bonita e direta-no-ponto Zoe, nome fictício de minha terapeuta, estávamos falando da mãe. Eu estava literalmente vertendo lágrimas em cântaros sobre o mais superficial clichê de “minha mãe não me amou,” quando a perspicaz Zoe interpelou-me: “Já pensastes na possibilidade de que ela te amou e pronto!” Como o rei que torna-se mudo e calado quando a sua nudez é descoberta, meu choro cessou. Imediatamente. Lógico que não tinha pensado na possibilidade! Mas não foi somente a falta de imaginação que me fez calar naquela sessão de terapia. Nem tampouco foi a nudez da minha medíocre atuação de usar um clichê para todas as minhas dores. Foi o “pronto!” de Zoe. Minha mãe era a rainha de terminar suas sentenças de punição ou imposição com “pronto!”. Tipo: “Não vai sair e pronto!” ou “Eu já disse e pronto!” Naquele momento o “pronto!” de Zoe entrou e ricocheteou dentro das minhas paredes de transferências, como uma bala na velocidade da luz. A bala fez buracos e, mesmo na transferência de papéis, uma luz pragmática e pronta entrou.  Aquele “pronto!” que me causava ódio na adolescência, agora acalantou-me o espírito. O “pronto!” tão consumado em si mesmo,  não deixava dúvidas pairar. A minha dor foi “resolvida” de pronto naquele instante.

Saí da terapia entoando “ela me amou, e pronto!” Três meses depois minha mãe morre repentinamente. Uma queda, uma ferida na perna, uma infecção. Foi tudo o que aconteceu para lhe tirar a vida. Ruminando a minha perda materna, escrevo o poema “Ela me amou e pronto!” É um prazer compartilhar com vocês esse poema para homenagear a minha mãe que faria 83 anos no dia 16 de abril e meu filho que fez 11 no dia 17 de abril.

 

Lolo e Xico 2013

Lolo e Xico 2013

ELA ME AMOU E PRONTO!

 

Ela me amou e pronto!

Do jeito que soube, do jeito que deu, de jeito que diziam, do jeito dela.

Ela me amou e pronto!

Amou também aos outros.

Amou aos irmãos com tamanha e profunda dedicação e subserviência.

Amou às irmãs com rigor que dispensava à alma feminina.

Amou também com compaixão ao outro que sofria e que lhe pedia ajuda.

Amou também ao marido com ressentimento, às vezes ódio, às vezes desprezo.

Ela me amou e pronto!

Isso devia ser suficiente. Mas não é. Mas não foi.

Impertinente eu digo: ela me amou, mas não demonstrou.

Resignada eu lembro: ela me amou quando saiu pela madrugada carregando meu corpo mole coberto de diarreia, enfrentou assaltantes, chegou ao hospital a tempo, enquanto seu marido dançava nas boates.

Ela me amou quando enfrentando o calor da tarde saiu comigo a procurar cura para a eczema que queimava as minhas pernas.

Ela me amou quando com medo me deixou ir para o centro da cidade sozinha para aulas de teatro.

Ela me amou quando me deixou ir e de longe rezou por mim, era tudo o que tinha para oferecer.

Ela me amou e pronto!

Isso deveria ser suficiente.

Ela me amou guardando um figurino do teatro dentro de uma sacola que ficou pendurada no cabide de seu quarto por trinta e um anos!

Ela me amou mesmo quando não tinha tempo para amar a si mesma.

Ela me amou quando nossas diferenças nos fizeram estranhas uma a outra.

Ela me amou lavando e dobrando a minha roupa, fazendo a minha cama, dando-me dinheiro para o ônibus, dizendo-me que era hora de ir para cama, chamando-me para comer.

Ela me amou e pronto!

Eu a amei sem jeito.

Eu a amei sem me fazer presente.

Eu a amei criticando suas escolhas e duvidando de seu amor.

Eu a amei com vergonha.

Eu a amei com raiva do que ela não podia e não queria mudar.

Eu a amei com admiração e zelo distante.

Eu a amei com a certeza do início.

Eu a amei no amor que tanto dava aos outros.

Eu a amei quando perversamente fazia ela se irritar e chorar.

Eu a amei quando a acusava.

Eu a amei quando a julgava limitada e sem garra.

Eu a amei na sua garra e vigor.

Eu a amei em imaginar a força que precisava para todos as manhãs se levantar e fazer a comida de mais um dia.

Eu a amo e pronto!

Ela me amou e pronto!

Isso é suficiente.

 

Sem Marcas, Quiçá Tenhamos Aderência

Sabe os Post-it, esses papéis quadradinhos ou retangulares, coloridos, que usamos para escrever coisas que queremos lembrar e grudamos perto da tela do computador,

 

no espelho do banheiro, na porta da geladeira, dentro da nossa bolsa, ou usamos para marcar páginas dos livros e fazer anotações curtas?

Eu uso sempre para não me perder na confusão dos meus dias. Tenho mania de espalhar Post-it pela casa. É a melhor forma que encontrei para aliviar a carga da memória. Uma vez escrito no Post-it, a cabeça fica livre do peso de ter que lembrar e aí sobra espaço para outras coisas…


 

Uma propriedade maravilhosa do Post-it é que a cola toca de leve na superfície, não agride, não deixa marcas. As mensagens grudam um tempo suficiente na verticalidade, e, eu acho que quase uma vida inteira, com a ajuda da força gravitacional, na horizontalidade. Há repouso e movimento nos dois planos, então não importa em que posição você gruda o papel do Post-it, este pode ser removido sem deixar vestígios visíveis a olho nú de sua existência prévia naquele lugar. Não causa danos aparentes.

 Eu acabei de ler o livro “Quiçá” da Luisa Geisler que me deixou com a sensação de Post-it.  Não sei se alguma vez você sentiu isso, de terminar um livro com a sensação corporal e imaginativa de um objeto.

 Sentiu?

Para mim foi a primeira vez.

 Luisa escreveu o livro com 21 anos e o mesmo ganhou o prêmio SESC de literatura em 2012. Ela é considerada um dos jovens talentos da literatura brasileira pela revista Granta. Ambas as premiações merecidas. E, pessoalmente eu acho que propiciar ao leitor sentir um objeto após a leitura de uma estória – essa conexão entre modalidades visuais, espaciais e imaginativas cognitivas – é em si um feito sem timidez.

 Deixa eu tentar explicar essa sensação de Post-it.

 O livro é uma estória com uma menina, Clarissa, de onze anos de tradicional classe média alta, que estuda em uma tradicional escola privada, que vive uma rotina tradicional de corrida de aulas particulares, que se entope de comidas de micro ondas e salgadinhos, que tem pais em um casamento tradicional com carreiras bem sucedidas vivendo a correria tradicional do capital. Há um rompimento desse torpor tradicional com a vinda de Arthur, um primo de 18 anos, para morar com a família por um ano. Arthur traz consigo uma bagagem de depressão, suicídio e rebeldia. Esse é o elemento de conflito escolhido por Luisa.

O livro não segue linearidade. É ousado. A narrativa mostra fragmentos múltiplos, como trechos de Saramago, trechos em italiano, diálogo em inglês, anúncios. Como vários Post-its espalhados pela casa.

 Pela estrutura da estória, não há densidade. Mas na narrativa há um entrelaçamento de pessoas (pais, mães, tias, tios, avós, primos, primas, amigos, colegas, namoradas) que passam pela vida umas das outras provocando movimentos nos planos verticais e horizontais. Esses entrelaçamentos são contados pela narrativa adolescente de forma monotônica sem deixar vestígios visíveis. Sem causar “danos” aparentes. Como um Post-it.

 Clarissa e Arthur são adolescentes hoje. E eles, mais do que as gerações passadas, encarnam o espírito anti super-bond. É a natureza anti permanente, liquída. Os pais de Clarissa ocupam-se de suas conquistas, na corrida rasa de sem metros para lugar nenhum, e estabelecem com a filha uma relação não presente, não invasiva, que eles acreditam que não deixará marcas traumáticas. Como um Post-it.

 Clarissa, por sua vez, navega no mundo agradando as expectativas e fazendo de tudo para não atrair visibilidade, não quer deixar vestígios. Como um Post-it.

 Arthur tentou fisicamente se fazer invisível, mas fracassou, ficou com marcas visíveis. É o personagem que com suas marcas provoca o movimento da estória. Mas, por agora, na narrativa de Luisa, visita a escola, fuma, bebe e se envolve sem entusiasmos com outros rapazes e moças. Como um Post-it.

 Seria o Post-it o mais profundo que conseguimos chegar de entender a impermanência da vida? Sabemos que a vida está sempre alterando-se, mas preferimos que esses distúrbios inerente à vida aconteçam sem dores; sem deixar marcas. Como um Post-it.

 Os dinossauros existiram no planeta cerca de milhões de anos atrás. Sabemos disso porque paleontólogos estudam as marcas deixadas por esses seres. Geólogos estudam a idade e os processos de vida da terra pelas camadas adensadas deixadas nas pedras, nos solos. Pessoalmente, prefiro que pessoas e objetos passem pela minha vida marcando-me. Nós somos as nossas marcas, os vestígios deixados de um tempo passado. Sem nossas marcas, quiçá tenhamos aderência.

 “Quiça” não é o trabalho de uma escritora madura, mas é uma obra de causar provocações. Grude um Post-it no seu computador para lembrar-se de ler esse livro curioso.

AS COISAS QUE EU CARREGO

Como presente de Natal o meu marido, que tem um humor discreto e pontiagudo, deu-me um livro que virou sensação por aqui. É um livro pequeno e fácil de ler de uma japonesa de trinta anos especialista em organização. Ela, a autora, tornou-se uma celebridade em seu país, na Europa, e agora também nos EUA, por empreender um método de organização baseado no desapego e no respeito pelos objetos que escolhemos para dividir a casa, nossos espaços íntimos e nossa rotina. O nome ocidental da autora é Marie Kondo e o livro – ainda não publicado em português – é “The Life-Changing Magic of Tidying Up – the Japanese art of decluttering and organizing” (A Magia Extraordinária da Arrumação – a arte japonesa de desentulhar e organizar).

Capa do livro e foto da autora

 

Quando recebi o presente dei uma risadinha e olhei com desconfiança o meu marido. Qual a mensagem disfarçada dentro daquele presente? Sou eu que sempre resmungo em casa sobre a incapacidade dele de jogar fora as coisas que não mais fazem parte da vida dele. Mas é ele quem é sistematicamente mais organizado do que eu. Eu pratico o desapego e ele pratica a organização. O problema que nossas praticas não se casaram ainda, vivem como amigas solteiras que dividem apartamento e no dia da faxina geral batem boca e ficam sem falar uma com a outra por dias até a confortável ordem preguiçosa se instalar novamente. Levei o livro para o banheiro e lá deixei, seria uma boa leitura para se fazer na privacidade do descarrego.

 

Eu esqueci do livro por completo. Quatro meses depois, quando começou surgir a necessidade de abrir a casa para tirar o cansado ar do inverno e deixar o novo ar da primavera entrar, eu lembrei-me do livro e comecei a lê-lo. Eu disse que o livro é de leitura fácil, mas é de difícil assimilação. Marie Kondo propõe que nós tratemos todas as coisas, mesmos os objetos inanimados, com gratidão e desapego. Que percebamos que eles, os objetos, são impermanentes como a vida que incessantemente se transforma. Seus conselhos são transformativos de hábitos. Por exemplo, ela diz que não devemos desentulhar um pouquinho a cada dia. Mas, devemos fazer de forma radical em um só dia começando de preferência às seis da manhã, em silêncio, e iniciar o processo por categorias, roupas, sapatos, livros, papéis, cozinha, etc.

Cada peça deve ser tocada, olhada e refletida se ainda há sentido, se a peça ainda trás alegria para a vida de quem a possui. Se não, deve-se dizer obrigada pelo tempo juntos e deve-se dispor das peças com carinho. Esse procedimento é uma íntima conversa com você mesma e Marie Kondo diz que por isso deve ser feito em silêncio, ouvindo seus sentimentos e intuições. Ela compara essa ação como sentar em meditação e colocar-se presente no aqui-e-agora.

A organização das peças que ficaram devem também acontecer com o mesmo respeito. Marie Kondo fala longamente de como dobrar e organizar as meias, por exemplo. Ela diz que fazer bolinhas das meias, ou dar-lhes um nó para não separem-se não ajuda as meias a descasarem do pesado trabalho que possuem. As meias precisam de conforto para respirarem nas gavetas. Então colocá-las juntas e dobrá-las três ou duas vezes, dependendo do tamanho da meia, formando um retângulo com a abertura da meia para cima e os dedos para dentro é a melhor forma de acomodá-las.

 Eu decidi começar a prática do radical desapego e organização proposto por Marie Kondo pela minha bolsa. Quais são as coisas que eu carrego? Com essa pergunta me lancei em uma intrigante des-coberta do peso da minha carga e identidades.

 

Conteúdos da minha bolsa

Lápis, canetas coloridas, canetas esferográficas, borrachas, usb drive, um estojo com grafite para lapiseira, tudo em uma bolsinha de nylon preta com caveirinhas, e um caderno para anotações. A presença desses objetos na minha bolsa causam-me conforto com a certeza de que posso registrar o acontecido, como se eu pudesse agarrar o vivido para além da minha frágil memória e, pelo menos pelo registro, fixar o impermanente. Descobri uma das minhas neuroses nesses objetos que carrego com grande felicidade.

Baton, protetor labial, “piranha” para prender o cabelo, álcool para as mãos, fone de ouvidos, kindle de capa vermelha, bolsinha com OB e absorventes, telefone celular, chaves e minha carteira são os pragmáticos imperativos presentes na minha bolsa sempre, pelas óbvias razões de estar preparada para o óbvio. Estar preparada para o esperado, é assim que navego os meus dias: conforme o esperado.

Resolvi olhar a minha carteira.

Minhas identidades

Na minha carteira há cartão de débito do banco HSBC, visa cartão de crédito, Gap cartão de crédito, cartão de desconto da farmácia, cartão de milhas de companhias aéreas. Esses cartões conferem à mim um status de consumidora do mundo das mercadorias. Ou melhor, uma privilegiada consumidora que costuma viajar e acumular milhas. Ou ainda, uma consumidora alienada que não se importa com as condições de produção das roupas da Gap pelos explorados jovens de Bangladesh. Não adianta eu dizer que não uso o tal cartão. Ele está na minha carteira, me acusando.

 Na minha carteira há também cartões de planos de saúde meu e do meu filho, plano dentário meu e do meu filho, cartão do meu tipo sanguíneo, de membro do Museu de Belas Artes de Boston, de membro do Museu de Ciências de Boston, de membro do Aquário de Boston, cartão da biblioteca pública. Listar a existência desses cartões na minha carteira fez-me sentir como uma mãe responsável que cuida da saúde da família e da formação cultural dos seus! Uma patrona da arte e da ciência! São cartões de alimentação do ego, das identidades que criei para mim.

 Além dos cartões já mencionados, há o cartão da academia, o cartão do estúdio de yoga, o cartão do Raul Gonzales III que é artista talentoso e meu professor de desenho, e selos para cartas. Olhar esses cartões fez-me perceber como a minha vida mudou muito e rapidamente. Um ano atrás eu não tinha tempo para escrever cartas, exercitar, fazer yoga, ou mesmo pensar em desenhar.

 Em um compartimento mais visível da minha carteira, há a minha carteira de motorista expedida pelo estado de Massachusetts. Lembro que fui fazer o teste para a carteira as três da tarde do dia 24 de dezembro, véspera de natal! Achei que era um engano do computador ter marcado o teste para aquele dia. Quem trabalharia em uma repartição de atendimento público, que não seja de segurança ou saúde, na tarde véspera de natal? Ninguém no Brasil. Mas a sala de espera estava cheia. Ao ser chamada a minha senha, o funcionário que me atendeu perguntou imediatamente que perfume que eu estava usando. Espantada com a inusitada pergunta e imaginando que ele iria reprovar a minha afronta olfatória, eu disse gaguejando que era Chanel no. 5. Senti a pele do meu rosto aquecer com a vergonha de ostentar um cheiro caro. O funcionário pediu para eu escrever o nome do perfume em um papel e perguntou se as mulheres gostam desse perfume. Eu disse que eu gostava. Ele disse que ao terminar o trabalho às cinco ele iria comprar o tal perfume para dar de presente para a sua namorada. Sempre que olhar para a minha carteira de motorista eu vou lembrar dessa estória e vou lembrar da minha vergonha.

 

Eu carrego na minha carteira duas medalhinhas de santas. Uma da Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e outra da Nossa Senhora de Nazaré. Ambas foram-me dadas pela minha mãe. Com essas senhoras eu não esqueço do bairro que vive em Belém, o Telégrafo, e nem da cidade de Belém. Com essas duas senhoras eu cruzo a cidade em boa companhia.

Não carrego muito dinheiro na minha carteira, mas o status de ter o crédito em cartões. Também carrego o cartão do metrô de Boston e do serviço de aluguel de bicicletas. Esses cartões me fazem dormir um pouco melhor sabendo que tento fazer a minha parte para emitir menos CO na atmosfera.

Ontem eu comprei dois ingressos de 5,00 dólares para ver uma palestra com Lydia Davis e outra com Miranda July, duas intrigantes escritoras americanas. Carrego os ingresso na carteira para ser usado na semana que vem. Carrego um novo interesse.

 Ao final, eu joguei fora o cartão da Gap. O resto ainda me traz alegria e conforto. O resto ficou. Mas, seguindo o conselho de Marie Kondo, olhei para cada objeto com compaixão por mim e gratidão pela presença deles na minha vida.

 Olhar para os objetos que eu carrego, me fez pensar nas coisas que me carregam; nas coisas que me constituem. Memórias, ódios, amores, pecados, vergonhas ... mas isso é coisa para um outro blog.

 Você já olhou assim para a tua carteira? Quais são as coisas que você carrega?

Fim

Cheguei ao fim do “Fim” de Fernanda Torres. Deixei o livro repousar por algumas semanas, precisava de tempo para ruminar as páginas engolidas com prazer. Depois desse tempo, voltei ao livro. Ou melhor dizendo, voltei às páginas dobradas no cantinho inferior – faço isso com todos os livros que leio; você faz isso também? Lá tinham passagens que chamaram a minha atenção na primeira leitura. Ao ler as páginas marcadas eu leio o livro novamente, dessa vez procurando por outras pistas.

Minhas páginas dobradas

Aliás, ler o “Fim” é como fazer aqueles antigos exercícios de lógica na qual você precisa identificar, baseado em algumas pistas, quem era amigo de quem, quem casou com quem, quais as profissões, quem morreu primeiro, com qual idade, qual a causa, além de buscar os espaços de justaposição em um diagrama de Venn. Esse enredo de trama que a todos envolve nos faz perceber que o universo físico dos personagens é pequeno como os espaços da cidade maravilhosa – que não passa pela cidade do Rio de Janeiro – mas com ampla vastidão para as complexidades do humano.

Sim, há um universo de personagens no “Fim.” Não é inesperado que assim seja. Criar personagens é o quê a atriz Fernanda Torres faz, e o faz com grande talento. No livro “Fim” ela usa de sua cátedra para cuidadosamente criar em narrativa os personagens cariocas de cinco amigos, Ciro, Sílvio, Neto, Ribeiro e Álvaro, que vivem sua juventude e idade adulta  nos anos 60-70 com tudo que o Rio de Janeiro pôde lhes oferecer: encontros na praia, paqueras, roda de seresta, drogas, sexo, festas, surubas, turmas do vôlei, turmas do clube, traições, carnaval. Vivem suas crises de meia idade entre os anos 80-90 nesta mesma cidade maravilhosa. E nela também vivem o seu ocaso. 

O livro inicia no fim. No fim da vida de cada um dos cinco amigos. Na reflexão dos momentos finais. Essa reflexão do fim acontece em narrativa pessoal, primeira pessoa. Primeiro lemos as lembranças do mais longevo dos cinco que caminha rabugento pelas ruas de Copacabana. Na rabugice de Álvaro, é impossível não simpatizar com seus reclames de como as cidades brasileiras não são pensadas, organizadas, arquitetadas para os que nelas envelhecem.

 “Morte lenta ao luso infame que inventou a calçada portuguesa. [...] Quadrados de pedregulho irregular socados à mão. À mão! É claro que ia soltar, ninguém reparou que ia soltar? Branco, preto, branco, preto, as ondas do mar de Copacabana. De que me servem as ondas do mar de Copacabana? Me deem chão liso, sem protuberâncias calcárias. Mosaico Estúpido. [...] Buraco, cratera, pedra solta, bueiro-bomba. Depois dos setenta a vida se transforma em uma corrida de obstáculos.”

 Nas cidades brasileiras ainda sofremos o ideal de país jovem e “perfeito”, com duas pernas, dois braços, dois olhos videntes, duas orelhas ouvintes e fôlego de maratonista. Lembro que quando a minha mãe começou a envelhecer em Belém, sua visão enfraqueceu devido as cataratas, as pernas ficaram menos ágeis, a escuta mais difícil no ouvido direito, ela tivera vários acidentes de cair nas calçadas desniveladas, de não saber se podia atravessar a rua pois não conseguia enxergar o sinal de pedestre do outro lado e algumas vezes foi atropelada por bicicletas. É difícil negociar o fim da juventude no país que se quer eternamente jovem. Um complexo de Peter Pan tem esse Brasil!

 Na caminhada, o longevo rabugento, divaga em sua gorda memória de 85 anos. Reflete sobre o seu frustrado casamento com a amiga da esposa de seu amigo do grupo dos cinco

 “O casamento é o estado civil mais indicado para homens que, como eu, não gostam de conviver com os outros. Nada mais exaustivo do que administrar encontros e expectativas. Um mau casamento pode ser ótimo para ambas as partes, e o meu foi assim. [...] vivíamos confortavelmente em dois quartos, tudo muito triste e civilizado.”

 Na caminhada também lembra da filha:

 “Rita era insegura, chata e gorda, além de pouco dotada intelectualmente.”

 A vida das esposas, amantes, filh@s que circundam os cinco personagens principais é apresentada ora pelo outro mais próximo, ora pela voz de um narrador, terceira pessoa não identificada. Nessa escolha  de alternância narrativa  de “quem fala,” a autora nos mostra que dos sentidos do nosso fim somente nós podemos falar. Não pertence à ninguém essa reflexão final. É uma reflexão pessoal e intransferível. Agora, a vida que tivemos a partir dos atos que realizamos alterando, influenciando, destruindo, edificando, tocando a vida dos outros, não nos pertence exclusivamente. É uma vida que pode ser narrada, contada pelos outros. E assim foi feito em “Fim.” As vidas de Ruth, Celia, Norma, Celeste, Suzana, Brites, Rita, Alda, Maria Clara, Inácio, João são contadas pelos outros.

 Quem lê o “Fim” talvez ficará intrigado como eu fiquei com  a infelicidade no casamento como um principal tópico na interseção do diagrama de Venn. Dos cinco amigos, quatro casaram-se, três separaram-se e todos os cinco acumularam infelicidades amorosas. O casamento especialmente é descrito pelos personagens masculinos do “Fim” como o fim da liberdade, fim da juventude, fim do tesão, fim das paixões, fim das cantorias, fim da alegria, fim dos prazeres. Lendo esses homens, eu penso que esse foi o tipo de casamento experimentado pela minha mãe. Mas meu pai, temendo este fim, usou de seu status de macho para evita-lo. Meus pais ficaram juntos na familiar infelicidade conjugal até que a morte os separou, quase sessenta anos depois de casados. O que é intrigante no “Fim” é justamente essa descrição com humor e ironia de nossas antiguidades, incluindo ai o casamento e o reinado do macho. Lendo o livro é impossível não refletir se será ainda hoje o casamento o começo do fim? Fim do que? Fim de quem? Fim para quem? O que você acha?

 Os personagens de “Fim” são todos cheios de falhas. A coragem que lhes faltou na juventude sobra-lhes na velhice ao abraçar com honestidade as mediocridades, crueldades, egoísmos, machismos e a profunda estupidez de pensar na glória insuperável do pênis. O fim da vida desses cinco personagens é marcada de ressentimentos. Um eterno re-sentir da dor vivida. Há o ressentimento porque esses personagens, como nós, são incapazes de desapegarem-se do peso morto de seus ódios e frustrações. E sendo incapazes de esquecer, são incapazes de amar. Amor que eu entendo como a leveza conquistada em aceitar que tropeços, falhas, acidentes, glórias, alegrias fazem parte da vida e, sendo assim, não são pesos adicionados para serem transportados. É simplesmente a vida como ela é. Aberta. Repleta de surpresas e mudanças. E esse movimento faz a vida regenerar-se sem fim. Na narrativa de Fernanda Torres vimos que o ressentimento é a metáfora do fim.

 “Acredito no castigo. Que é um jeito de crer em Deus. Torto, mas é. Venho de uma linhagem antiga e perversa, de dráculas, crápulas e afins. O paraíso não me serve de nada... A divina morte é o meu império. É o que eu busquei a vida inteira. [...] Entrei como saí. O homem não muda, transmuta, sempre igual. Até a próxima eternidade.”

 

“A morte não existe. [...] Vou estar na planta, na baba da lagarta que devora a planta, na mosca que lambe a baba da lagarta que devora a planta. Estarei por ali. Foi de bom tamanho, eu estava cansado. A indiferença daqui me cai bem. [...] Falei muito mal das mulheres, elas merecem. Os homens também não prestam para nada. E um não foi feito para o outro.”

 Há  também mortes sem metáforas em “Fim.” Mortes por acidente, por câncer, por suicídio, por overdose, por abusos. Os cinco personagens principais de “Fim” morrem na solidão de suas existências. Fernanda Torres nos faz sentir essa solidão do fim, mas, ao mesmo tempo, parece receosa de explorar a solidão como condição humana. E aí o texto dela se encurta. Esse é um sentimento que eu geralmente tenho ao ler literatura brasileira, de que a narrativa é encurtada, rapidamente mencionada. E parece existir um grande receio dos autores de soltarem-se em explorações de motivos, reflexões, devaneios, conexões e ensaios. Por isso a grande maioria dos livros brasileiros são de poucas páginas, eu acho. O leitor atento pode ver que Fernanda pesquisou meticulosamente as reações físicas para cada morte, mas ela resume isso em um ou dois parágrafos. Gostaria de ter lido uma Fernanda mais à vontade na escrita reflexiva e menos em guarda. Talvez isso seja a insegurança do primeiro livro.

 Há várias pérolas em “Fim”, como a “morte” fantasiada na sexy enfermeira que queria ser uma sexy aeromoça, como o filho que assim se despede do pai em anúncio fúnebre no jornal:

 “Inácio, comunica o falecimento de seu malquisto pai, infiel marido, abominável avô e desleal amigo. ‘Peço perdão a todos os que, como eu, sofreram ultrajes e ofensas, e os convido para o tão aguardado sepultamento que terá lugar no dia 23 de fevereiro de 2009...’”

 O livro é absolutamente recomendado. Se puder, leia o bem humorado “Fim” de Fernanda Torres.

 

P.S. para quem como eu mora em outro país, é possível agora comprar livros brasileiros no formato e-book na amazon.com.br. Aproveite.

Primeiro Amor

Eu estava no banheiro lavando as mãos quando meu filho entrou correndo. Com urgência anunciou, "Mama, eu estou amando!" Eu paralisei por alguns segundos. Meu sangue pareceu desaparecer das veias. Ao mesmo tempo meu coração disparou. Um calor subiu pelo meu rosto, e estávamos no pior inverno da história de Boston! Ele repetiu em inglês para ter a certeza de que eu havia entendido a declaração: Mama, I am in love!.

Minha mente disparou em frenético monólogo na minha mudez:

 Quem será o menino?

Ou será menina? Se for, tudo bem, maravilhoso, sem problemas.

Como eu pergunto isso a ele ?

O quê dizer para não estragar esse momento?  

Eu sei que vou estragar. É melhor não dizer nada. Espera!

Mas ele veio me contar ele quer que eu diga alguma coisa.

Fala!

Oh céus sorria sua idiota. Isso não é o fim do mundo

Será que ele está sofrendo?

Não vou aguentar ouvir se ele me disser que está sofrendo de amores…”

Finalmente meu filho me tira da minha agonia e declara: I love this book! e me apresenta o dito cujo. Eu estava implicando com ele por alguns dias por causa desse livro. Eu não achava que era um livro interessante; pela capa e pelo título parecia um livro repleto de clichês da cultura americana escolar. Mas quando ele esticou o braço para apresentar o seu amor e colocou o livro a um palmo de distância da minha cara e olhou-me com olhos brilhantes de pura felicidade, minha face relaxou e lágrimas escorreram pelo meu rosto. Abracei ele e o livro juntos e disse coisas do tipo “Que lindo!, “Como estou feliz por você! Ele disse que sabia que eu não estava gostando muito do livro dele, mas que eu deveria ler para sentir como o livro era maravilhoso. Disse-me como era divertido ler um livro narrado por um menino da idade dele e vivendo coisas muito parecidas com as coisas que ele estava vivendo. Senti culpa por ter expressado sentimentos de desaprovação ao livro. Desculpei-me efusivamente e disse que não iria ler o livro porque não era o tipo estória que eu gostava, mas que estava feliz pelo amor dele. Abençoei o amor dos dois.

Meu filho foi se aconchegar no sofá em baixo de um delicioso cobertor com seu amor, e eu me retirei para lidar como as minhas confusas, reveladoras e nostálgicas emoções.

Xico com seus amores. Brookline, 2015

 Lembrei-me de quando me descobri apaixonada por um livro. Eu devia ter uns treze anos, quatro anos mais velha que meu filho.  Um livro grosso de capa dura caiu nas minhas mãos. Não me lembro agora as circunstâncias do encontro. Talvez fosse de algum amigo de meus irmãos mais velhos que deixou lá por casa. Livros como aquele não havia na minha casa.  Em casa tínhamos o jornal local diariamente entregue na porta, uma enciclopédia Barsa com seus volumes em capa de couro vermelha, várias revistas de fotonovelas que minhas primas e irmãs liam com voracidade e fervor, e várias livros de romance-folhetim da coleção Sabrina, Julia e Samantha. Ah, e também gibis de diferentes tipos. A literatura da minha casa era comprada em banca de revistas, nunca em uma livraria! O universo literário da minha família tinha dois objetivos: ler para informação e diversão rápida; concisa. Ninguém passava muito tempo se aconchegando com um livro.

Quando o objeto de meu amor caiu nas minhas mãos, e eu me descobri completamente apaixonada por aquele livro, foi uma completa surpresa para mim! Por semanas eu era consumida pelo desejo de voltar pra casa correndo da escola e encontrar meu livro - assim como meu filho fez hoje. Quando eu estava com meu livro as horas passavam e eu não percebia. Minha atenção e desejo tinham um foco, um destino. Com este amor eu descobri que poderia sair de casa, do bairro e de qualquer chatice sem que ninguém percebesse e começasse a fazer perguntas imbecis. O prazer deste amor é para além das contingências.

 Acordar de manhã cedo e ir ao encontro do seu amado. Dormir com o seu amor. Detestar as horas de separação. Dedicar horas inertes e relaxadas com o seu amado. Rir e chorar com o seu amor. Descobrir-se amando um livro é sonhar com o conhecimento de si. Meu filho descobriu este amor aos nove anos!

Ele descobriu-se amando estilos literários que mais o agrada. Saber o quê agrada à você mesmo é difícil! Eu passei muito tempo sem saber. O que me agradava era o que eu fazia para agradar os outros. Eu tentei repetir a mesma submissão ao meu filho censurando o gosto dele! Que medo de mim mesma me deu! Ainda bem que meu filho não me deu a mínima atenção e escolheu o que o agrada. Ele confia no conhecimento que tem de si e gruda no agradável amor de sua alma.

 Amor à livro é intenso, é desnudante e é uma das primeiras vivências de flexibilidade amorosa. Para amar alguém, você precisa exercitar a sua capacidade de flexão, contorção e molejo. Com o livro não é diferente. Você ama um hoje, amanhã outro. No mês seguinte você ama dois ou três ao mesmo tempo. Depois você se pergunta como você pôde ter amado aquele livro canalha que você leu no passado! Em seguida você ama e odeia um livro que te perturba e te diverte profundamente. Aí você encontra um livro que é absolutamente chato, mas que você não consegue abandonar e não sabe porque. E tem livros que logo de cara você não gosta e não está a fim de passar nem um segundo perto. E se você for mais antenada do que eu, você não vai julgar livros pela capa!

 Logo o livro se torna familiar e ao mesmo tempo algo de reverência.

 Neste momento lembrei-me com tristeza e ainda raiva de um episódio que aconteceu em uma viagem de ônibus que fiz de Florianópolis para Criciúma, uma cidade no interior de Santa Catarina. Estava viajando a trabalho e ao entrar no ônibus e localizar o meu acento na poltrona do corredor, tirei da minha bolsa um saco com biscoitos e o livro que estava lendo e me acomodei para desfrutar do prazer precioso da sua companhia. Nas poltronas do outro lado do corredor estava uma família de pai, mãe e duas filhas, na idade de mais ou menos sete e cinco anos.  Durante os primeiros trinta minutos da viagem, as crianças estavam distraídas no colo de seus pais jogando jogos nos celulares, mas depois começaram a ficar entediadas com o sacolejar do ônibus. A criança mais velha notou-me e começou a olhar pra mim fixamente. Acenei, sorri e voltei ao meu livro. Sem tirar o olho de mim e com um ar de grande curiosidade ela perguntou aos pais o que era aquilo que eu tinha nas mãos. Os pais tentaram distraí-la oferecendo lanche. Ela recusou. Eu lhe ofereci meus biscoitos. Ela também recusou. Não era dos biscoitos que ela falava. Voltou a perguntar e apontar para o objeto que eu segurava e esticou-se tanto para apontar que tocou no livro e arregalou os olhos com surpresa. Eu sorri e mostrei-lhe meu livro - não havia nenhuma ilustração na capa e nada de interessante. Era um livro sobre ler livros. O título era "Lendo Lolita em Teerã" de Azar Nafisi. A menina sorriu largo de volta e tentou agarrá-lo. Os pais falaram para ela não me perturbar e voltar a jogar no celular. Ela passou o resto da viagem arriscando olhares para o meu livro. Como pode esse objeto imensamente mais antigo que um celular ser desconhecido e exótico para alguém? A culpa de sentir um prazer aparentemente ainda acessível somente a poucos invadiu-me. Segui o resto da viagem puta e com o estômago queimando com o ácido da raiva, porque o abismo da desigualdade está a um braço de distância e não há pontes!

 Quando eu li esta crônica para a minha irmã Rosa, ela perguntou qual era o livro que foi o teu primeiro amor? Eu não lembro. Depois ela perguntou, o que era a estória? Eu também não consigo lembrar. Mas eu lembro do peso do livro, da cor da capa e do amor sentido. Das sensações. Quem disse que a gente pode confiar na memória como um registro fidedigno de dados? 

Qual é a tua lembrança de primeiro amor por um livro? O  que tu lembras do livro, da estória, e dos momentos juntos? Usa o espaço de comentários para partilhar a tua estória de amor às palavras de alguém. Estou esperando...

E você também pode partilhar esse blog nas tuas páginas sociais para a gente criar esse diálogo coletivo sobre livros e ruminações. 

Beijos e até semana que vem!

CONFIANÇA, VULNERABILIDADE E CONEXÃO – O livro de Amanda Palmer e uma nova atitude de viver

Em outubro de 2014 eu adquiri o livro de Amanda Palmer  "The Art of Asking - or How I Learned to Stop Worrying and Let People Help"  Não foi uma simplória compra de chegar na livraria e pegar o livro e pagar, ou fazer o pedido on-line para alguma livraria virtual. Não. Foi um projeto de aquisição com mais esforço. Primeiro eu fui ao improvisado concerto de lançamento do livro que aconteceu na  praça em frente a universidade de Harvard, em  Cambridge, as dez horas de uma noite fria de outono nos EUA, onde Amanda cantou e tocou seu ukulele para uma multidão de cerca de trezentos admiradores que se juntaram para a celebração.  Em seguida, convidados por Amanda, pelo escritor Neil Gailman (seu marido) e escoltados pela polícia local, a multidão caminhou cerca de dois quilômetros até uma livraria independente, local onde aconteceria à meia-noite mais um show com artistas convidados e a venda oficial do livro que Amanda autografaria para o público presente, o qual em frente a livraria parecia ter triplicado de quantidade.

Capa do livro de Amanda em Inglês

Capa do livro de Amanda em Inglês

Não é somente esta anedota de estar presente no momento da festa que faz a aquisição do livro especial para mim. Eu acompanho a carreira de Amanda Palmer desde de 1998 quando fui profundamente tocada pela sua performance de uma estátua viva de noiva, branca, pálida, kabuki, com seu vestido em sépia, bordado, antigo.  Amanda vestida de seu personagem “Noiva” subia em caixotes plásticos segurando um buquê de flores com suas longas luvas de branco cetim, ajeitava-se, imobilizava-se e, assim, colocava-se  nos dias calorentos de verão na praça em frente à Universidade de Harvard para interromper o torpor dos corpos que transitavam na popular Harvard Square. As pessoas que parassem para apreciar a performance e colocassem dinheiro no vaso vazio aos pés da estátua-viva, tiravam a “Noiva” de sua paralisia e ganhavam um olhar, uma conexão, uma flor. Logo em seguida a “Noiva” retornava à sua inexorabilidade.

Em 1998 eu morava em Cambridge e tinha vários pequenos empregos para pagar as contas. Trabalhava como barista (nome mais refinado para garçonete de café) em um ainda não popular café chamado Starbucks durante as manhãs nos finais de semana, trabalhava duas noites nos finais de semana como garçonete em um restaurante mexicano, e duas tardes como babá. Tudo isso para pagar as custear o meu mestrado nos Estados Unidos. Passar por Harvard Square era parte do meu trajeto cotidiano para pegar o metrô. Em uma dessas idas e vindas eu conheci a “Noiva.” Aquela imagem penetrou-me o espírito no primeiro olhar. Havia feito teatro em Belém por dez anos e tinha abandonado a arte pela academia por medo de não conseguir sustentar-me financeiramente. Meus amigos artistas viviam com profundas dificuldades financeiras que muitas vezes afetavam suas saúdes, embora nunca destruíssem  seus espíritos de aventura e brincadeira. A “Noiva” de Amanda era a minha projeção do fantasma da arte, que imóvel permanecia até que o dinheiro, meio de seu sustento, lhe garantisse a vida que durava o tempo de uma interação.

A “Noiva” escancarava para mim mesma as fraturas da minha existência. E com dor e profunda admiração passei a assistir a intervenção artística de Amanda frequentemente. Ficava de longe olhando-a e observando a reação dos passantes. Depois, quando meu escasso tempo se esgotava, eu pagava meu respeito pela sua arte, que me tirava do lugar comum da labuta diária para me fazer existir humana em desejos e criação, com os dólares feitos do meu cansaço. Era uma troca justa. É isso que significa sustentar a existência da arte e dos artistas, não?

Terminei o mestrado. Retornei ao Brasil. Dei aulas na universidade da capital do país. Amanda continuou em Cambridge com seu trabalho de artista de rua, e também como balconista em uma sorveteria local e stripper. Ela também colecionava vários empregos. Tudo isso para pagar as contas, o aluguel e a comida.

Um ano depois retorno à Cambridge com bolsa de doutorado paga pelo governo brasileiro. Isso significaria que poderia estudar por quatro anos sem precisar sentir dores na coluna e criar varizes nas pernas por ter de servir café por oito horas e carregar bandejas pesadas no restaurante. Era verão de 1999 e em Harvard Square estava Amanda, no mesmo lugar, fazendo a sua performance. Vê-la ali era como reencontrar uma velha amiga. Fui até a “Noiva” paguei e coletei a minha flor em silêncio. Mas dentro de mim havia um explosivo desejo de lhe dizer que meu sacrifício havia valido a pena, que eu agora estava em uma situação melhor, que minha escolha teria se mostrado correta, que eu não era mais uma “penetra” na festa chique do clube dos intelectuais.

No verão de 2000 foi a cerimônia de meu casamento. Quando eu decidi casar com o homem que eu amo, eu pensava na metáfora da “Noiva” de Amanda Palmer. Eu já havia passado por dois casamentos anteriores, os quais eu não tinha tido a “competência” de manter. Tinha medo de continuar acumulando falidos casamentos. Então pensei que a oficialização do casamento é uma representação teatral de um contrato de conexão, confiança, vulnerabilidade. Então precisava que a “Noiva” estivesse presente neste teatro. Convidei Amanda. Ela foi. Por duas horas, Amanda Palmer foi a "Noiva" no meu casamento.

Heloiza e Cashman casando em 2000

A "Noiva" de Amanda Palmer e meu amigo Rob no meu casamento - Julho de 2000

Meus amigos Bruno e Simone com a "Noiva" no meu casamento - Julho 2000

Molly e a "Noiva", meu casamento - July 2000

Terminei meu doutorado, tive um filho, fiz pós-doutorado, retornei ao Brasil, dei aulas, fiz pesquisas, escrevi artigos acadêmicos, falei em conferências.

Amanda montou uma banda estilo cabaré-punk chamada Dresden Dolls, gravaram e venderam suas músicas, fizeram sucesso internacional. Amanda faz carreira solo, rompe com a gravadora, inicia uma campanha no site de financiamento coletivo Kickstarter para patrocinar sua música e recebe cerca de U$ 1,2 milhão de dólares de doação dos seus fãs, vai ao canal TED contar da sua experiência de artista de rua a ícone de uma nova geração que pela colaboração digital transforma a comercialização da arte, e escreve um livro.

Dezesseis anos depois do meu primeiro encontro com a arte de Amanda Palmer, fui para as celebrações de lançamento de seu livro e depois para a fila obter o autógrafo, o abraço e o reencontro com Amanda. O seu livro será lançado no Brasil neste mês de Março pela editora Intrínseca com o título “A Arte de Pedir – Ou como eu aprendi a parar de me preocupar e deixar que outros me ajudem.”

O livro memorialístico de Amanda Palmer fala de seu percurso de artista de rua à “diva” da campanha milionária de doações virtuais. Usando de suas experiências, Amanda nos fornece tópicos intrigantes de reflexão relacionados à produção e consumo de arte na sociedade capitalista, como, por exemplo, pensar a diferença entre “pedir” e “mendigar.” Para Amanda “pedir” é um ato de intimidade que requer confiança, respeito e reciprocidade. “Mendigar” é um ato de desespero, medo e fraqueza. Quem mendiga demanda ajuda. Quem pede, tem fé na capacidade humana de compartilhar e amar. E assim Amanda estabelece o principal argumento de seu livro.

“A Arte de Pedir” me faz pensar nas centenas de artistas de rua brasileiros que passam o chapéu coletando doações dos passantes para sobreviver e na relação que estabelecemos com esses artistas. Lembro que na cidade em que nasci, Belém, no estado do Pará, havia sempre um cego que tocava sanfona nos arredores do mercado do Ver-o-Peso. As pessoas comentavam de como o "coitado" não tinha outro jeito de ganhar a vida e davam dinheiro penitentemente para o menino que o ajudava coletando as doações. Com o meu Grupo AJIR (sim, com "J" mesmo! Uma longa estória) de teatro de rua, fazíamos espetáculos circenses nas mesmas praças do centro de Belém. Dezenas de pessoas paravam para assistir e uma multidão logo se juntava. Mas na hora que anunciávamos que passaríamos o chapéu para coletar doações, as pessoas rapidamente se retiravam e frequentemente comentavam que precisávamos procurar trabalho de verdade. Eu lembro de me enfurecer com essa atitude. Era uma lógica estranha: o "coitado" pode pedir, mas o artista se pedir é visto como vagabundo. Aquele era o meu trabalho! Amanda escreve com compaixão dos gritos de “Vai trabalhar!” lançados para a sua “Noiva.” Os autores desses insultos são cegos para do fato que aquele era o seu trabalho. Qual é o nosso grau de cegueira para o trabalho dos artistas que povoam as ruas das cidades brasileiras?

No livro Amanda conta com clara honestidade do nascimento da sua banda Dresden Dolls, das dificuldades de subsistir no circuito alternativo, do controle sobre a produção artística, o visual, os canais de comunicação com o público que os empresários da arte querem impor aos artistas, da sua campanha milionária de doações, do amigo que está enfrentando câncer, e de seu relacionamento e casamento com o autor Neil Gaiman, enfatizando nesta narrativa de vários fios a vergonha, o medo de rejeição, o medo de sentir-se menos quando se pede ajuda. Amanda não esconde sua exposta vulnerabilidade e a aspereza da batalha de sobreviver da sua arte com relatos de assalto sexual e manipulativas mentiras de fãs.

O livro de Amanda reflete uma artista que circula com graça e conforto pelas mídias sociais e usa as modernas plataformas para perturbar o mercado de quem faz e de quem consume arte . A “Arte de Pedir” é uma leitura recomendada para pensarmos um novo modelo de transação econômica baseada na partilha direta com o público. O modelo proposto por Amanda é baseado na simples fórmula de pedir com gratidão e compartilhar com amplidão. E ela está novamente experimentando uma nova forma de pedir no site de financiamento coletivo Patreon. Mas, estreitando o foco do livro na sua experiência, Amanda ignora as relações de poder que determinam na sociedade “quem” tem voz de pedir,  “o quê” pedir, e “para quem” pedir. A autora faz campanha entusiasmada ao poder democratizante da internet em empoderar vozes. Sem dúvidas é a internet um valioso instrumento. Mas não é um instrumento isento de moldar-se às relações de poder. A utopia de Amanda de que somos todos inatamente capazes e temos as oportunidades de pedir e receber ajuda se choca com a distopia do mundo das desigualdades. Mas isso não é sua culpa. A mensagem de Amanda Palmer vale a pena ser lida, refletida e imaginada com mente curiosamente aberta.