QUE SE REPITA ATÉ O FIM!

Em Novembro do ano passado eu viajei para ficar oito dias com o meu pai que estava internado na UTI de um hospital de Belém. Os médicos lhe davam antibióticos na veia para conter uma pneumonia. Seu corpo fraco e curvado, seus olhos pequenos e puxados, como os olhos dos índios da região, não se abriam com agilidade e nem com foco. Suas mãos calejadas, de pele dura, falanges enrugadas e  grossas estavam com ataduras para garantir que a agulha do soro não saísse da veia. Uma mão já estava inchada e não poderia ser mais usada. Suas veias estavam ficando finas, assim como a sua existência se afinava diante de mim.

Mas ele exibia melhoras e exibia vontade de comer peixe e voltar pra casa. No dia seguinte ele foi liberado para continuar o tratamento com os antibióticos em casa. Mais humano desse jeito, penso eu. Apesar de ele ter Milena, que cuida dele em casa enquanto minhas irmãs e irmãos trabalham, eu disse que cuidaria dele naquela semana. Ele ainda se lembrava de mim e eu precisava me agarrar nessa presença para me entender no presente.

Acordava de manhã e ajudava minha irmã no ritual de trocar-lhe a fralda, vesti-lo em roupas limpas e secas, trocar os lençóis da cama, leva-lo até a mesa para servir-lhe um mingau espesso e morno em pequenas colheradas, depois sentava com ele na poltrona pegando o sol da manhã que entrava pela janela da sala e lia-lhe o jornal ou puxava conversa. Eu fiz essas mesmas ações com meu filho quando ele era um bebê, e ali eu as repetia com meu pai. Ambos vulneráveis. Ambos  vivendo o momento presente. Mas meu filho acumulava memórias. Meu pai perdeu as suas.

Meu pai em sua lambreta cerca de 1950

Noivado de minha mãe e meu pai no inicio dos anos 50.

Meu pai tem 86 anos e há mais de quinze anos foi diagnosticado com Alzheimer, doença que é responsável pela maioria dos caso de demência na velhice.

 Jake, personagem do livro The Wilderness de Samantha Harvey (Espaços em Branco), arquiteto britânico, perto dos setenta anos também foi diagnosticado com Alzheimer. Em uma passagem do livro na qual Jake encontra a filha que não ele não via há anos e lhe conta da sua doença e a filha lhe diz que está esperando um filho, então ele acorda no dia seguinte e diz não saber se aquele encontro realmente existiu. Com profunda angustia o personagem se diz preso e acorrentado ao presente, pois sem o futuro e com o passado embaralhado na memória ele não tem mais nada.

 De longe vi meu pai embaralhar os eventos na cabeça e confundir as pessoas. Aí ele começou a esquecer. Esqueceu de dar dinheiro para a feira. Esqueceu que tinha um carro. Esqueceu de tomar remédios. Esqueceu da mulher. Esqueceu dos filhos. Esqueceu dos netos. Esqueceu da fidelidade da mulher e lhe inventava amantes. Esqueceu onde era o banheiro da casa que construiu com as próprias mãos. Aos poucos ele foi deixando de ser.

 

Meu pai, sua primeira neta, e eu em 1996 quando ele foi diagnosticado com Alzheimer

Meu pai em 1997 em uma roda de samba

 

A literatura, as estórias humanas narradas com sensibilidade, nos fazem entender o drama da vida cotidiana. Quando eu li o Leite Derramado de Chico Buarque, eu pude compreender a insuportável agonia do meu pai. No livro de Chico o narrador é Eulálio um homem de cem anos que internado em um pobre abrigo para velhos tenta buscar pedaços da sua memória, da sua estória, antes de ele deixar de ser. Sem memória não somos.

“[...] E debaixo do banho observei meu corpo fremente, só que neste momento minha cabeça fraquejou, não sei mais de que banho estou falando. São tantas as minhas lembranças, e lembranças de lembranças de lembranças, que já não sei em qual camada da memória eu estava agora. Nem sei se eu era moço ou muito velho, só sei que me olhava quase com medo.” (p. 138-9)

 Sim, acumulamos estórias que nos dão densidade em camadas, como as camadas geológicas da terra nos diz da estória da evolução do planeta.

 “Pai, você lembra de quando tu conheceste a mamãe?” Puxo conversa enquanto ele toma sol sentado na poltrona.

“... Lembro.” Ele abre a boca, espera alguns longos segundos antes de falar devagar.

“Onde vocês se conheceram?”

“… hum… Na casa dela …”

“Tu sabias onde ela morava?”

“… sim.”

“Como tu sabias? Tu moravas perto?”

“… não. … eu morava com ela.”

“Tu moravas com ela? Como assim?”

“ … eu nasci lá …”

“Tu nascestes lá? Na casa da minha mãe?”

“… sim… eu nasci lá…dela … da minha mãe.”

Esse meu diálogo com meu pai, me lembra a seguinte fala do personagem do Leite Derramado:

“[...] A memória é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas. Não pode é alguém de fora se intrometer, como a empregada que remove a papelada para espanar o escritório. Ou como a filha que pretende dispor minha memória na ordem dela, cronológica, alfabética, ou por assunto.” (p.41)

 Eu era a filha impondo minha ordem e referência nas suas memórias. Que falta de sensibilidade a minha!

Eu e meu pai em Novembro de 2014

 Em um outro dia quando cuidava de meu pai, ele começou sentir muitas dores no braço onde entrava os antibióticos doloridos. Tirei-lhe o soro das veias, como o enfermeiro havia me ensinado, mas não sabia o que fazer para acalmá-lo. Daí eu lembrei-me do documentário Alive Inside: A Story of Music and Memory” (Vivo por Dentro: Uma Estória de Música e Memória. Existe no Netflix) que havia assistido alguns meses atrás. O documentário mostra a cruzada empreendida por um assistente social, Dan Cohen, já aposentado que dedica seu tempo livre a levar música para pacientes com Alzheimer em instituições focadas no internamento e medicalização dos velhos nos EUA. Dan coloca um par de fones de ouvidos em pessoas que pararam de existir e toca músicas que eram as preferidas dessas pessoas. A reação é viva, é linda, é vibrante, é emocionante! A música é a última de nossas memórias a morrer, segundo Oliver Sacks. Quando eu terminei de ver o documentário, eu comprei um par de fones de ouvidos e coloquei no correio para o meu pai. Então eu fui procurar o par de fone de ouvidos pela casa, encontrei-os e os coloquei nas suas orelhas com boleros de Reginaldo Rossi, canções de Nelson Gonçalves, sambas de Paulinho da Viola, Alcione e Martinho da Vila. Meu pai imediatamente relaxou, seus olhos abriram e sua mão começou a balançar no rítmo das músicas que ouvia. Em seguida ele começou a cantar! Eu tinha certeza que nesse momento ele lembrava das músicas e dos paços de dança. Adorava dançar! Tinha uma agilidade nos pés invejada e admirada.

Eu e meu pai em Novembro de 2014

Eulálio de o Leite Derramado de Chico Buarque, diz

“[...] Mas se com a idade a gente dá pra repetir certas histórias, não é por demência senil, é porque certas histórias não param de acontecer em nós até o fim da vida.”

 Eu não tenho a menor ideia o que acontece no pensamento do meu pai, que esta semana novamente retornou à UTI com infecção de urina e nos pulmões, mas eu espero que  as lembranças das músicas e danças que embalavam e davam alegria ao seu corpo não parem de se repetir até o fim.

 Preciosas obras literárias que tem Alzheimer na trama:

Leite Derramado, Chico Buarque, 2009, Cia das Letras

 Para Sempre Alice, Lisa Genova, 2009, Nova Fronteira (O filme com o mesmo título foi lançado no ano passado)

 The Wilderness, Samantha Harvey, 2009, Doubleday (tem tradução em Português europeu por uma editora de Portugal com o título de Espaços em Branco, 2010, Bertand Editora)

 

*** Que coincidência, todos os livros foram publicados no mesmo ano!