“EU JÁ TINHA TE FALO!”
“EU JÁ TINHA TE FALO!”
Quando eu comecei a escrever esse blog, foi porque além de estar escrevendo um livro que tem a ver com a minhas memórias, eu comecei a ler muito outros autores que escreveram sobre suas memórias. E disso tudo surgiu um desejo meu de compartilhar com mais gente essas leituras e de conversar sobre esses livros que bravamente tem seus autores como personagens e narradores de suas próprias estórias.
Uma escritora descoberta por acaso e que me causou grande impacto foi a italiana Natalia Ginzburg. Primeiro eu li um pequeno texto de três páginas publicado em uma antologia, e isso foi o suficiente para que eu revirasse a biblioteca de Brookline, cidade onde eu moro, procurando por mais. Queria livros inteiros dela. Queria passar o dia inteiro consumindo a escrita de Natalia Ginzburg, era o meu desejo.
Natalia Ginzburg nasceu em 1916, foi escritora, editora, tradutora das obras de Proust, ativista política, membro do partido comunista Italiano e eleita membro do parlamento por este partido em dois mandatos. Desiludida com o partido, saiu e dedicou-se a causa das crianças palestinas, reforma nas leis de adoção e assistência às vítimas de estupro. Natalia Ginzburg morreu em 1991, foi o que me disse a orelha do livro dela. Não acreditei. Suas palavras estão vivas comigo e ignorei essa informação. Continuei lendo The Things We Used To Say que para nosso profundo deleite está traduzido e publicado no Brasil, pela Cosac Naify com o título muito bonito e apropriado de Léxico Familiar.
Em Léxico Familiar, Natalia descreve como um observador distante os ditos e feitos de sua família de classe média, intelectualmente bem posicionada. A família de Natalia engajada no movimento de resistência ao fascismo de Mussolini, sobrevive a esse período e aos horrores da segunda guerra mundial com perdas e sequelas dramáticas. Mas sua narrativa não se exalta em enfeites com os dramas vividos, e isso é o encanto da virtuosidade desta escritora. Natalia descreve o cotidiano da família na qual a poesia, a literatura, o esporte e a ciência são peças usadas no dia-a-dia por todos, com despojamento e honestidade, elementos que despertaram em mim uma forte empatia.
Ao descrever a forte personalidade de seu pai, um famoso acadêmico, de origem judia, que cria palavras e frases para dizer de coisas que ele desaprova nos outros, ela o faz com uma linguagem direta. Descreve com a mesma linguagem as brigas entre os irmãos, os ciúmes da mãe em relação às amigas da filha velha, o aprisionamento do pai e dos irmão e, mais tarde, do marido que sofre torturas e morre na prisão. Ela também descreve a mãe, mulher de formação socialista, que expressa seus entendimentos do mundo pelas frases e ditados ditos pelas pessoas que passaram pela sua vida. Essas frases ditas e inventadas fazem parte do fraseado da família e lhes confere a liga que os une, assim como os valores que compartilham.
"Somos cinco irmãos. Vivemos em cidades diferentes, alguns de nós no exterior, e não nos escrevemos com frequência. […] Mas basta, entre nós, uma palavra. Basta uma palavra, uma frase: uma daquelas frases antigas, ouvidas e repetidas infinitas vezes, no tempo da nossa infância. […] Uma daquelas frases ou palavras faria que nos reconhecêssemos no escuro de uma gruta, entre milhões de pessoas. Aquelas frases são o nosso latim, o vocabulário dos nossos dias passados, são como os hieróglifos dos egípcios ou dos assírio-babilônicos, o testemunho de um núcleo vital que deixou de existir, mas que sobrevive ... salvos da fúria das águas, da corrosão do tempo."
Neste universo tão distante no tempo e na geografia da minha própria vida, eu me encontro. Eu me vejo com a minha família dividindo o palavreado que nos é tão familiar e que fala de nossas estórias. Acho que todas as família têm seu fraseado interno particular.
Mesmo vivendo por muitos anos distante, basta que algum dos meus irmãos e irmãs digam, “Égua moleque, uma broca é uma broca, duas brocas é uma fome!”[1] ou me lembrem da ameaça do “Vai, só te digo vai!”[2] uma simples frase do nosso dito familiar, para que surja uma forte conexão entre nós, lembrando-nos das experiências partilhadas. Se algumas horas atrás eu não conseguia sentir o que me ligara à essas pessoas, depois de ouvir algumas frases e expressões, a familiaridade e cumplicidade torna-se presente, levando-me a compreender o que é família: essa cola que nos liga.
O livro Léxico Familiar de Natalia Ginzburg me instiga a pensar que os laços familiares não são fortes porque há uma genética comum entre os membros. Mas como então?[3] São fortes e profundos porque esses laços foram feitos dentro de uma linguagem que os configurou. Os laços dos ditos e feitos familiares são comunhões simbólicas. “Eu já tinha te falo,”[4] como alertava em concordância a minha mãe.
Para mim foi impossível ler o livro de Natalia e não lembrar da casa dos meus pais cheia de meninos e meninas, amigos meus e de meus irmãos e irmãs, tentando passar as horas de calor intenso de Belém inertes na frente da televisão, e minha mãe desligando o aparelho e mandando todo mundo ir procurar o que fazer “pois cabeça vazia é oficina do diabo.” Ou a tristeza de ver o final de semana acabar no domingo a noite com minha dizendo que era hora de dormir “porque amanhã é dia de branco.” Eu acho que ela tirou essa frase do tempo em que ela trabalhava como lavadeira. Ou, o temperamento explosivo de meu pai que dizia para a molecada ficar longe das coisas dele, porque ele dizia: “eu não me engasgo com elefante, mas me engasgo com uma formiga.” Ou ainda da minha mãe contando de uma traição de uma conhecida dela afirmando “ eu tenho um pé de cá-te-espera plantado,” sinalizando que ela aguardaria a conhecida retornar pedindo ajuda para devolver-lhe o insulto. Ah, como essas frases me transportam para um outro tempo! Pira paz não quero mais![5]
O Léxico Familiar é um livro biográfico, mas como a memória é escorregadia, é também um romance. Leia-o como quiser, mas por favor, leia!
Você tem frases que só à tua família pertence? Quer compartilhar e nos dizer? Então diz nos comentários.
Léxico Familiar de Natalia Ginzburg, foi publicado pela editora Cosac Naify, 2010.
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Expressões Paraenses Usadas Neste Texto:
[1] Dito para enfatizar um estado de faminto.
[2] Expressão de ameaça das mães para o filho que desobedece.
[3] Expressão de que não entendeu e pede para explicar.
[4] Enfatizando que um aviso já tinha sido feito.
[5] Significa parar de fazer o que estava fazendo.