DIFERENTE BLUES!

Diferente Blues

 Geralmente eu tenho mais vontade do que real energia para ver um filme depois das 10 da noite. Costumeiramente, guiada pela maníaca vontade, eu tento me convencer que lógico que eu vou ficar acordada para ver o filme e, inevitavelmente, eu adormeço depois de quinze minutos de telinha e aconchego no sofá.

Em uma quinta-feira, sem nada mais interessante para ver na televisão, meu marido comentou displicentemente de um filme francês que ele havia colocado em nosso arquivo na internet. Vestida da vontade, eu pulei na oportunidade de assistir a um filme do tipo artístico-alternativo. Sem paciência que estou para os filmes americanos. Pelo avançar da hora, a aposta era que eu iria adormecer. Mas não foi isso que aconteceu quando eu me sentei para ver Azul É A Cor Mais Quente, do Tunísio  Abdellatif Kechiche. Minha expectativa era de ver um filme sobre o descobrir-se do jeito que é, abordando a sexualidade de adolescentes.  O filme foi isso. E muito mais!

 

O filme,  inspirado na História em Quadrinhos de mesmo nome da escritora francesa Julie Maroh, foge dos clichês, tanto comerciais e alternativos, e mostra a tristeza e as tensões da personagem Adele, vivida pela atriz Adele Exarchopoulos, navegando na arena do estar vivo e ser sexual, que no filme é a mesma coisa – e na vida representada pelas instituições são coisas separadas.

 

Adele descobre que tem desejos por garotas. Esta descoberta é mostrada no filme como um processo natural de perceber-se vivo. Não há atribuições de culpas ou julgamentos. Adele levada pela crescente curiosidade de seus desejos conhece a sua amante de cabelos azuis em um bar de lésbicas em Paris. As cenas de sexo de Adele e sua amante contêm toda a voracidade, avidade, sofreguidês natural e bem vinda do desejo pulsante. Apesar de apreciar a beleza e a natureza desta cenas, isso nem foi o foco do filme para mim. Quase documental, o filme detalha com proximidade porosa a vulnerabilidade de crescer neste mundo de tantos deuses. E mostra sem julgamentos e sem lições de moral diferentes estéticas do viver da contemporaneidade.

O mundo da adolescente Adele é permeado de ativismos políticos, de clássicas aulas de literatura e filosofia na escola pública de algum subúrbio de classe média-baixa das redondezas de Paris, como também, da estética jovem da conectividade em blue-jeans, e dos  valores da classe trabalhadora figurada no pai em camisa de colarinho azul claro (blue-collar) . Estética mostrada na família de Adele que janta macarronada sem diálogos, assistindo à algum programa popular de televisão, e toma vinho tinto sem cerimônia, mais como um analgésico do dia. Esta parece ser a rotina.

Com a namorada/amante de cabelos azuis uma nova estética é introduzida no filme. A da classe abastada intelectualmente e com privilégios financeiros. Na família de sua amante, uma aluna de artes visuais e aspirante a artista, Adele é introduzida como namorada. Na família de Adele sua sexualidade é escondida. Na família da amante de Adele, durante o jantar, há conversas sobre política, artes, humanidades, degustações culinárias e apreciações enólogas. Adele circula nesse mundo estranho ao seu apresentando, sem receios, vergonhas, ou julgamentos seus valores de classe trabalhadora. Quando interrogada pela mãe de sua amante no jantar, no qual ela experimenta ostras pela primeira vez, o que ela fará ao terminar o liceu, segundo grau, Adele responde que pretende formar-se professora, pois é a formação de um trabalho prático que garante emprego e sustento. Essa informação é recebida com desdém curioso por parte da estética de outras cores da família de sua amante. Diferentes blues!

Adele mesmo feliz é triste. Não se acanha de parecer e estar vulnerável aos imprevistos e desequilíbrios da vida. Adele crescendo com o seu medo estampado é refrescante de se ver – cansada que estou da cultura de documentar ao mundo, em redes internéticas, da vida sem vulnerabilidades.

A personagem Adele trouxe conexões e memórias.

O blues-azul também está na capa do livro de memórias do neurologista Oliver Sacks, famoso por seus livros anteriores que retrataram seus casos psiquiátricos estudados com profundada sensibilidade ao humano por está por trás do rótulo médico. Com uma carta publicada no New York Times em Fevereiro deste ano, Dr. Oliver Sacks anunciou que está com um câncer em metástase no fígado e que tem pouco tempo de vida. Nesse pouco tempo que lhe resta, ele em movimento contínuo escreve um livro de suas memórias, o qual foi lançado aqui nos EUA em abril com o título "On The Move - A Life" (tradução: Em movimento - Uma Vida). Eu ainda não terminei de ler o livro, mas uma parte tocante do livro é quando ele revela o conflito com sua própria homossexualidade, que foi recebida por sua mãe, quando ele ainda era adolescente com a afirmação: “Você é uma abominação. Eu desejo que você nunca tivesse nascido.” Isso marcou o jovem Oliver Sacks, que passou a sua vida adulta enfrentando a culpa de ser quem ele é. Uma biografia profundamente reveladora e transformadora que vale a pena ler quando chegar no Brasil

Veja o Dr. Oliver Sacks na capa de seu livro com sua moto em 1961 in Greenwich Village.

Com a Adele do filme, lembrei-me da minha adolescência na periferia de Belém. Atravessando a fronteira da periferia para o centro da cidade onde negociaria a vida com intelectuais, artistas, e alguns privilegiados em geral. Sentia medo, vergonha, humilhação, alegria e dor. Ria silenciosamente da falta de noção de quem morava no centro do quê era a vida nos bairros populares. Adorava a tranquilidade e limpeza da vida dos apartamentos do centro da cidade. Na minha cabeça, cada dia da minha adolescência era um jazz cheio de surpresas.

Depois de ficar acordada até quase uma hora da madrugada vendo o filme Azul É A Cor Mais Quente, acordo com sono e com alegria. As imagens do filme ainda vivas em minha mente entoam um blues melancólico e poético que vem do sul, juntamente com um blues dissonante e eletrificado do norte. E eu? Eu saltito, em diferente blues! Rock me baby !!!!

 

Em homenagem ao rei: Que descanse em blues celeste B.B. King!