CONFIANÇA, VULNERABILIDADE E CONEXÃO – O livro de Amanda Palmer e uma nova atitude de viver
Em outubro de 2014 eu adquiri o livro de Amanda Palmer "The Art of Asking - or How I Learned to Stop Worrying and Let People Help" Não foi uma simplória compra de chegar na livraria e pegar o livro e pagar, ou fazer o pedido on-line para alguma livraria virtual. Não. Foi um projeto de aquisição com mais esforço. Primeiro eu fui ao improvisado concerto de lançamento do livro que aconteceu na praça em frente a universidade de Harvard, em Cambridge, as dez horas de uma noite fria de outono nos EUA, onde Amanda cantou e tocou seu ukulele para uma multidão de cerca de trezentos admiradores que se juntaram para a celebração. Em seguida, convidados por Amanda, pelo escritor Neil Gailman (seu marido) e escoltados pela polícia local, a multidão caminhou cerca de dois quilômetros até uma livraria independente, local onde aconteceria à meia-noite mais um show com artistas convidados e a venda oficial do livro que Amanda autografaria para o público presente, o qual em frente a livraria parecia ter triplicado de quantidade.
Não é somente esta anedota de estar presente no momento da festa que faz a aquisição do livro especial para mim. Eu acompanho a carreira de Amanda Palmer desde de 1998 quando fui profundamente tocada pela sua performance de uma estátua viva de noiva, branca, pálida, kabuki, com seu vestido em sépia, bordado, antigo. Amanda vestida de seu personagem “Noiva” subia em caixotes plásticos segurando um buquê de flores com suas longas luvas de branco cetim, ajeitava-se, imobilizava-se e, assim, colocava-se nos dias calorentos de verão na praça em frente à Universidade de Harvard para interromper o torpor dos corpos que transitavam na popular Harvard Square. As pessoas que parassem para apreciar a performance e colocassem dinheiro no vaso vazio aos pés da estátua-viva, tiravam a “Noiva” de sua paralisia e ganhavam um olhar, uma conexão, uma flor. Logo em seguida a “Noiva” retornava à sua inexorabilidade.
Em 1998 eu morava em Cambridge e tinha vários pequenos empregos para pagar as contas. Trabalhava como barista (nome mais refinado para garçonete de café) em um ainda não popular café chamado Starbucks durante as manhãs nos finais de semana, trabalhava duas noites nos finais de semana como garçonete em um restaurante mexicano, e duas tardes como babá. Tudo isso para pagar as custear o meu mestrado nos Estados Unidos. Passar por Harvard Square era parte do meu trajeto cotidiano para pegar o metrô. Em uma dessas idas e vindas eu conheci a “Noiva.” Aquela imagem penetrou-me o espírito no primeiro olhar. Havia feito teatro em Belém por dez anos e tinha abandonado a arte pela academia por medo de não conseguir sustentar-me financeiramente. Meus amigos artistas viviam com profundas dificuldades financeiras que muitas vezes afetavam suas saúdes, embora nunca destruíssem seus espíritos de aventura e brincadeira. A “Noiva” de Amanda era a minha projeção do fantasma da arte, que imóvel permanecia até que o dinheiro, meio de seu sustento, lhe garantisse a vida que durava o tempo de uma interação.
A “Noiva” escancarava para mim mesma as fraturas da minha existência. E com dor e profunda admiração passei a assistir a intervenção artística de Amanda frequentemente. Ficava de longe olhando-a e observando a reação dos passantes. Depois, quando meu escasso tempo se esgotava, eu pagava meu respeito pela sua arte, que me tirava do lugar comum da labuta diária para me fazer existir humana em desejos e criação, com os dólares feitos do meu cansaço. Era uma troca justa. É isso que significa sustentar a existência da arte e dos artistas, não?
Terminei o mestrado. Retornei ao Brasil. Dei aulas na universidade da capital do país. Amanda continuou em Cambridge com seu trabalho de artista de rua, e também como balconista em uma sorveteria local e stripper. Ela também colecionava vários empregos. Tudo isso para pagar as contas, o aluguel e a comida.
Um ano depois retorno à Cambridge com bolsa de doutorado paga pelo governo brasileiro. Isso significaria que poderia estudar por quatro anos sem precisar sentir dores na coluna e criar varizes nas pernas por ter de servir café por oito horas e carregar bandejas pesadas no restaurante. Era verão de 1999 e em Harvard Square estava Amanda, no mesmo lugar, fazendo a sua performance. Vê-la ali era como reencontrar uma velha amiga. Fui até a “Noiva” paguei e coletei a minha flor em silêncio. Mas dentro de mim havia um explosivo desejo de lhe dizer que meu sacrifício havia valido a pena, que eu agora estava em uma situação melhor, que minha escolha teria se mostrado correta, que eu não era mais uma “penetra” na festa chique do clube dos intelectuais.
No verão de 2000 foi a cerimônia de meu casamento. Quando eu decidi casar com o homem que eu amo, eu pensava na metáfora da “Noiva” de Amanda Palmer. Eu já havia passado por dois casamentos anteriores, os quais eu não tinha tido a “competência” de manter. Tinha medo de continuar acumulando falidos casamentos. Então pensei que a oficialização do casamento é uma representação teatral de um contrato de conexão, confiança, vulnerabilidade. Então precisava que a “Noiva” estivesse presente neste teatro. Convidei Amanda. Ela foi. Por duas horas, Amanda Palmer foi a "Noiva" no meu casamento.
Terminei meu doutorado, tive um filho, fiz pós-doutorado, retornei ao Brasil, dei aulas, fiz pesquisas, escrevi artigos acadêmicos, falei em conferências.
Amanda montou uma banda estilo cabaré-punk chamada Dresden Dolls, gravaram e venderam suas músicas, fizeram sucesso internacional. Amanda faz carreira solo, rompe com a gravadora, inicia uma campanha no site de financiamento coletivo Kickstarter para patrocinar sua música e recebe cerca de U$ 1,2 milhão de dólares de doação dos seus fãs, vai ao canal TED contar da sua experiência de artista de rua a ícone de uma nova geração que pela colaboração digital transforma a comercialização da arte, e escreve um livro.
Dezesseis anos depois do meu primeiro encontro com a arte de Amanda Palmer, fui para as celebrações de lançamento de seu livro e depois para a fila obter o autógrafo, o abraço e o reencontro com Amanda. O seu livro será lançado no Brasil neste mês de Março pela editora Intrínseca com o título “A Arte de Pedir – Ou como eu aprendi a parar de me preocupar e deixar que outros me ajudem.”
O livro memorialístico de Amanda Palmer fala de seu percurso de artista de rua à “diva” da campanha milionária de doações virtuais. Usando de suas experiências, Amanda nos fornece tópicos intrigantes de reflexão relacionados à produção e consumo de arte na sociedade capitalista, como, por exemplo, pensar a diferença entre “pedir” e “mendigar.” Para Amanda “pedir” é um ato de intimidade que requer confiança, respeito e reciprocidade. “Mendigar” é um ato de desespero, medo e fraqueza. Quem mendiga demanda ajuda. Quem pede, tem fé na capacidade humana de compartilhar e amar. E assim Amanda estabelece o principal argumento de seu livro.
“A Arte de Pedir” me faz pensar nas centenas de artistas de rua brasileiros que passam o chapéu coletando doações dos passantes para sobreviver e na relação que estabelecemos com esses artistas. Lembro que na cidade em que nasci, Belém, no estado do Pará, havia sempre um cego que tocava sanfona nos arredores do mercado do Ver-o-Peso. As pessoas comentavam de como o "coitado" não tinha outro jeito de ganhar a vida e davam dinheiro penitentemente para o menino que o ajudava coletando as doações. Com o meu Grupo AJIR (sim, com "J" mesmo! Uma longa estória) de teatro de rua, fazíamos espetáculos circenses nas mesmas praças do centro de Belém. Dezenas de pessoas paravam para assistir e uma multidão logo se juntava. Mas na hora que anunciávamos que passaríamos o chapéu para coletar doações, as pessoas rapidamente se retiravam e frequentemente comentavam que precisávamos procurar trabalho de verdade. Eu lembro de me enfurecer com essa atitude. Era uma lógica estranha: o "coitado" pode pedir, mas o artista se pedir é visto como vagabundo. Aquele era o meu trabalho! Amanda escreve com compaixão dos gritos de “Vai trabalhar!” lançados para a sua “Noiva.” Os autores desses insultos são cegos para do fato que aquele era o seu trabalho. Qual é o nosso grau de cegueira para o trabalho dos artistas que povoam as ruas das cidades brasileiras?
No livro Amanda conta com clara honestidade do nascimento da sua banda Dresden Dolls, das dificuldades de subsistir no circuito alternativo, do controle sobre a produção artística, o visual, os canais de comunicação com o público que os empresários da arte querem impor aos artistas, da sua campanha milionária de doações, do amigo que está enfrentando câncer, e de seu relacionamento e casamento com o autor Neil Gaiman, enfatizando nesta narrativa de vários fios a vergonha, o medo de rejeição, o medo de sentir-se menos quando se pede ajuda. Amanda não esconde sua exposta vulnerabilidade e a aspereza da batalha de sobreviver da sua arte com relatos de assalto sexual e manipulativas mentiras de fãs.
O livro de Amanda reflete uma artista que circula com graça e conforto pelas mídias sociais e usa as modernas plataformas para perturbar o mercado de quem faz e de quem consume arte . A “Arte de Pedir” é uma leitura recomendada para pensarmos um novo modelo de transação econômica baseada na partilha direta com o público. O modelo proposto por Amanda é baseado na simples fórmula de pedir com gratidão e compartilhar com amplidão. E ela está novamente experimentando uma nova forma de pedir no site de financiamento coletivo Patreon. Mas, estreitando o foco do livro na sua experiência, Amanda ignora as relações de poder que determinam na sociedade “quem” tem voz de pedir, “o quê” pedir, e “para quem” pedir. A autora faz campanha entusiasmada ao poder democratizante da internet em empoderar vozes. Sem dúvidas é a internet um valioso instrumento. Mas não é um instrumento isento de moldar-se às relações de poder. A utopia de Amanda de que somos todos inatamente capazes e temos as oportunidades de pedir e receber ajuda se choca com a distopia do mundo das desigualdades. Mas isso não é sua culpa. A mensagem de Amanda Palmer vale a pena ser lida, refletida e imaginada com mente curiosamente aberta.