ELA ME AMOU E PRONTO!
Ela me amou e pronto!
Em 2012 eu tive um abcesso no útero que explodiu dentro de mim e me levou a ficar oito dias hospitalizada, meses de tratamento com antibióticos que bagunçaram meus hormônios, causaram problemas na tireoide e alguns cistos nos ovários. Essa temporária desordem levou-me a investigar meu estar no mundo, minha relação com as pessoas e as coisas que comia, ouvia, bebia, tolerava, não tolerava, admirava, repugnava, empreendia tempo e doava espaço. Para investigar essas coisas todas eu comecei a fazer meditação Zen Budista, aulas de Yoga e terapia. Voltar para dentro de mim mesma foi o jeito que encontrei de encarar terrores que me causavam tremores. Em uma das sessões de terapia com a inteligente, bonita e direta-no-ponto Zoe, nome fictício de minha terapeuta, estávamos falando da mãe. Eu estava literalmente vertendo lágrimas em cântaros sobre o mais superficial clichê de “minha mãe não me amou,” quando a perspicaz Zoe interpelou-me: “Já pensastes na possibilidade de que ela te amou e pronto!” Como o rei que torna-se mudo e calado quando a sua nudez é descoberta, meu choro cessou. Imediatamente. Lógico que não tinha pensado na possibilidade! Mas não foi somente a falta de imaginação que me fez calar naquela sessão de terapia. Nem tampouco foi a nudez da minha medíocre atuação de usar um clichê para todas as minhas dores. Foi o “pronto!” de Zoe. Minha mãe era a rainha de terminar suas sentenças de punição ou imposição com “pronto!”. Tipo: “Não vai sair e pronto!” ou “Eu já disse e pronto!” Naquele momento o “pronto!” de Zoe entrou e ricocheteou dentro das minhas paredes de transferências, como uma bala na velocidade da luz. A bala fez buracos e, mesmo na transferência de papéis, uma luz pragmática e pronta entrou. Aquele “pronto!” que me causava ódio na adolescência, agora acalantou-me o espírito. O “pronto!” tão consumado em si mesmo, não deixava dúvidas pairar. A minha dor foi “resolvida” de pronto naquele instante.
Saí da terapia entoando “ela me amou, e pronto!” Três meses depois minha mãe morre repentinamente. Uma queda, uma ferida na perna, uma infecção. Foi tudo o que aconteceu para lhe tirar a vida. Ruminando a minha perda materna, escrevo o poema “Ela me amou e pronto!” É um prazer compartilhar com vocês esse poema para homenagear a minha mãe que faria 83 anos no dia 16 de abril e meu filho que fez 11 no dia 17 de abril.
ELA ME AMOU E PRONTO!
Ela me amou e pronto!
Do jeito que soube, do jeito que deu, de jeito que diziam, do jeito dela.
Ela me amou e pronto!
Amou também aos outros.
Amou aos irmãos com tamanha e profunda dedicação e subserviência.
Amou às irmãs com rigor que dispensava à alma feminina.
Amou também com compaixão ao outro que sofria e que lhe pedia ajuda.
Amou também ao marido com ressentimento, às vezes ódio, às vezes desprezo.
Ela me amou e pronto!
Isso devia ser suficiente. Mas não é. Mas não foi.
Impertinente eu digo: ela me amou, mas não demonstrou.
Resignada eu lembro: ela me amou quando saiu pela madrugada carregando meu corpo mole coberto de diarreia, enfrentou assaltantes, chegou ao hospital a tempo, enquanto seu marido dançava nas boates.
Ela me amou quando enfrentando o calor da tarde saiu comigo a procurar cura para a eczema que queimava as minhas pernas.
Ela me amou quando com medo me deixou ir para o centro da cidade sozinha para aulas de teatro.
Ela me amou quando me deixou ir e de longe rezou por mim, era tudo o que tinha para oferecer.
Ela me amou e pronto!
Isso deveria ser suficiente.
Ela me amou guardando um figurino do teatro dentro de uma sacola que ficou pendurada no cabide de seu quarto por trinta e um anos!
Ela me amou mesmo quando não tinha tempo para amar a si mesma.
Ela me amou quando nossas diferenças nos fizeram estranhas uma a outra.
Ela me amou lavando e dobrando a minha roupa, fazendo a minha cama, dando-me dinheiro para o ônibus, dizendo-me que era hora de ir para cama, chamando-me para comer.
Ela me amou e pronto!
Eu a amei sem jeito.
Eu a amei sem me fazer presente.
Eu a amei criticando suas escolhas e duvidando de seu amor.
Eu a amei com vergonha.
Eu a amei com raiva do que ela não podia e não queria mudar.
Eu a amei com admiração e zelo distante.
Eu a amei com a certeza do início.
Eu a amei no amor que tanto dava aos outros.
Eu a amei quando perversamente fazia ela se irritar e chorar.
Eu a amei quando a acusava.
Eu a amei quando a julgava limitada e sem garra.
Eu a amei na sua garra e vigor.
Eu a amei em imaginar a força que precisava para todos as manhãs se levantar e fazer a comida de mais um dia.
Eu a amo e pronto!
Ela me amou e pronto!
Isso é suficiente.