Fim

Cheguei ao fim do “Fim” de Fernanda Torres. Deixei o livro repousar por algumas semanas, precisava de tempo para ruminar as páginas engolidas com prazer. Depois desse tempo, voltei ao livro. Ou melhor dizendo, voltei às páginas dobradas no cantinho inferior – faço isso com todos os livros que leio; você faz isso também? Lá tinham passagens que chamaram a minha atenção na primeira leitura. Ao ler as páginas marcadas eu leio o livro novamente, dessa vez procurando por outras pistas.

Minhas páginas dobradas

Aliás, ler o “Fim” é como fazer aqueles antigos exercícios de lógica na qual você precisa identificar, baseado em algumas pistas, quem era amigo de quem, quem casou com quem, quais as profissões, quem morreu primeiro, com qual idade, qual a causa, além de buscar os espaços de justaposição em um diagrama de Venn. Esse enredo de trama que a todos envolve nos faz perceber que o universo físico dos personagens é pequeno como os espaços da cidade maravilhosa – que não passa pela cidade do Rio de Janeiro – mas com ampla vastidão para as complexidades do humano.

Sim, há um universo de personagens no “Fim.” Não é inesperado que assim seja. Criar personagens é o quê a atriz Fernanda Torres faz, e o faz com grande talento. No livro “Fim” ela usa de sua cátedra para cuidadosamente criar em narrativa os personagens cariocas de cinco amigos, Ciro, Sílvio, Neto, Ribeiro e Álvaro, que vivem sua juventude e idade adulta  nos anos 60-70 com tudo que o Rio de Janeiro pôde lhes oferecer: encontros na praia, paqueras, roda de seresta, drogas, sexo, festas, surubas, turmas do vôlei, turmas do clube, traições, carnaval. Vivem suas crises de meia idade entre os anos 80-90 nesta mesma cidade maravilhosa. E nela também vivem o seu ocaso. 

O livro inicia no fim. No fim da vida de cada um dos cinco amigos. Na reflexão dos momentos finais. Essa reflexão do fim acontece em narrativa pessoal, primeira pessoa. Primeiro lemos as lembranças do mais longevo dos cinco que caminha rabugento pelas ruas de Copacabana. Na rabugice de Álvaro, é impossível não simpatizar com seus reclames de como as cidades brasileiras não são pensadas, organizadas, arquitetadas para os que nelas envelhecem.

 “Morte lenta ao luso infame que inventou a calçada portuguesa. [...] Quadrados de pedregulho irregular socados à mão. À mão! É claro que ia soltar, ninguém reparou que ia soltar? Branco, preto, branco, preto, as ondas do mar de Copacabana. De que me servem as ondas do mar de Copacabana? Me deem chão liso, sem protuberâncias calcárias. Mosaico Estúpido. [...] Buraco, cratera, pedra solta, bueiro-bomba. Depois dos setenta a vida se transforma em uma corrida de obstáculos.”

 Nas cidades brasileiras ainda sofremos o ideal de país jovem e “perfeito”, com duas pernas, dois braços, dois olhos videntes, duas orelhas ouvintes e fôlego de maratonista. Lembro que quando a minha mãe começou a envelhecer em Belém, sua visão enfraqueceu devido as cataratas, as pernas ficaram menos ágeis, a escuta mais difícil no ouvido direito, ela tivera vários acidentes de cair nas calçadas desniveladas, de não saber se podia atravessar a rua pois não conseguia enxergar o sinal de pedestre do outro lado e algumas vezes foi atropelada por bicicletas. É difícil negociar o fim da juventude no país que se quer eternamente jovem. Um complexo de Peter Pan tem esse Brasil!

 Na caminhada, o longevo rabugento, divaga em sua gorda memória de 85 anos. Reflete sobre o seu frustrado casamento com a amiga da esposa de seu amigo do grupo dos cinco

 “O casamento é o estado civil mais indicado para homens que, como eu, não gostam de conviver com os outros. Nada mais exaustivo do que administrar encontros e expectativas. Um mau casamento pode ser ótimo para ambas as partes, e o meu foi assim. [...] vivíamos confortavelmente em dois quartos, tudo muito triste e civilizado.”

 Na caminhada também lembra da filha:

 “Rita era insegura, chata e gorda, além de pouco dotada intelectualmente.”

 A vida das esposas, amantes, filh@s que circundam os cinco personagens principais é apresentada ora pelo outro mais próximo, ora pela voz de um narrador, terceira pessoa não identificada. Nessa escolha  de alternância narrativa  de “quem fala,” a autora nos mostra que dos sentidos do nosso fim somente nós podemos falar. Não pertence à ninguém essa reflexão final. É uma reflexão pessoal e intransferível. Agora, a vida que tivemos a partir dos atos que realizamos alterando, influenciando, destruindo, edificando, tocando a vida dos outros, não nos pertence exclusivamente. É uma vida que pode ser narrada, contada pelos outros. E assim foi feito em “Fim.” As vidas de Ruth, Celia, Norma, Celeste, Suzana, Brites, Rita, Alda, Maria Clara, Inácio, João são contadas pelos outros.

 Quem lê o “Fim” talvez ficará intrigado como eu fiquei com  a infelicidade no casamento como um principal tópico na interseção do diagrama de Venn. Dos cinco amigos, quatro casaram-se, três separaram-se e todos os cinco acumularam infelicidades amorosas. O casamento especialmente é descrito pelos personagens masculinos do “Fim” como o fim da liberdade, fim da juventude, fim do tesão, fim das paixões, fim das cantorias, fim da alegria, fim dos prazeres. Lendo esses homens, eu penso que esse foi o tipo de casamento experimentado pela minha mãe. Mas meu pai, temendo este fim, usou de seu status de macho para evita-lo. Meus pais ficaram juntos na familiar infelicidade conjugal até que a morte os separou, quase sessenta anos depois de casados. O que é intrigante no “Fim” é justamente essa descrição com humor e ironia de nossas antiguidades, incluindo ai o casamento e o reinado do macho. Lendo o livro é impossível não refletir se será ainda hoje o casamento o começo do fim? Fim do que? Fim de quem? Fim para quem? O que você acha?

 Os personagens de “Fim” são todos cheios de falhas. A coragem que lhes faltou na juventude sobra-lhes na velhice ao abraçar com honestidade as mediocridades, crueldades, egoísmos, machismos e a profunda estupidez de pensar na glória insuperável do pênis. O fim da vida desses cinco personagens é marcada de ressentimentos. Um eterno re-sentir da dor vivida. Há o ressentimento porque esses personagens, como nós, são incapazes de desapegarem-se do peso morto de seus ódios e frustrações. E sendo incapazes de esquecer, são incapazes de amar. Amor que eu entendo como a leveza conquistada em aceitar que tropeços, falhas, acidentes, glórias, alegrias fazem parte da vida e, sendo assim, não são pesos adicionados para serem transportados. É simplesmente a vida como ela é. Aberta. Repleta de surpresas e mudanças. E esse movimento faz a vida regenerar-se sem fim. Na narrativa de Fernanda Torres vimos que o ressentimento é a metáfora do fim.

 “Acredito no castigo. Que é um jeito de crer em Deus. Torto, mas é. Venho de uma linhagem antiga e perversa, de dráculas, crápulas e afins. O paraíso não me serve de nada... A divina morte é o meu império. É o que eu busquei a vida inteira. [...] Entrei como saí. O homem não muda, transmuta, sempre igual. Até a próxima eternidade.”

 

“A morte não existe. [...] Vou estar na planta, na baba da lagarta que devora a planta, na mosca que lambe a baba da lagarta que devora a planta. Estarei por ali. Foi de bom tamanho, eu estava cansado. A indiferença daqui me cai bem. [...] Falei muito mal das mulheres, elas merecem. Os homens também não prestam para nada. E um não foi feito para o outro.”

 Há  também mortes sem metáforas em “Fim.” Mortes por acidente, por câncer, por suicídio, por overdose, por abusos. Os cinco personagens principais de “Fim” morrem na solidão de suas existências. Fernanda Torres nos faz sentir essa solidão do fim, mas, ao mesmo tempo, parece receosa de explorar a solidão como condição humana. E aí o texto dela se encurta. Esse é um sentimento que eu geralmente tenho ao ler literatura brasileira, de que a narrativa é encurtada, rapidamente mencionada. E parece existir um grande receio dos autores de soltarem-se em explorações de motivos, reflexões, devaneios, conexões e ensaios. Por isso a grande maioria dos livros brasileiros são de poucas páginas, eu acho. O leitor atento pode ver que Fernanda pesquisou meticulosamente as reações físicas para cada morte, mas ela resume isso em um ou dois parágrafos. Gostaria de ter lido uma Fernanda mais à vontade na escrita reflexiva e menos em guarda. Talvez isso seja a insegurança do primeiro livro.

 Há várias pérolas em “Fim”, como a “morte” fantasiada na sexy enfermeira que queria ser uma sexy aeromoça, como o filho que assim se despede do pai em anúncio fúnebre no jornal:

 “Inácio, comunica o falecimento de seu malquisto pai, infiel marido, abominável avô e desleal amigo. ‘Peço perdão a todos os que, como eu, sofreram ultrajes e ofensas, e os convido para o tão aguardado sepultamento que terá lugar no dia 23 de fevereiro de 2009...’”

 O livro é absolutamente recomendado. Se puder, leia o bem humorado “Fim” de Fernanda Torres.

 

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