DIÁRIO DE VIAGEM: Imigrantes e Refugiados
Imigrantes e Refugiados
Para quem está lendo este blog pela primeira vez, eu quero informar da minha condição de imigrante. Meu filho nasceu nos EUA, e quando ele tinha um-ano-e-seis-meses nós. Meu filho, meu marido e eu, mudamos para Florianópolis. Depois de oito anos no sul do Brasil, meu marido reclamou a vontade de retornar seu país de origem, pelo menos por um tempo. Voluntariamente migramos para Boston. Como imigrante privilegiada, eu passei um ano no limbo burocrático esperando os “papéis da imigração” para trabalhar, tirar carteira de motorista e ter a vida registrada. Nunca fiquei sem casa, sem comunicação, sem roupas, sem comida, sem conforto. Ninguém me perseguiu, nem explodiu minha casa ou minha cidade, destruiu a escola de meu filho, ou assassinou a minha família e minha comunidade. Essa é a distinção feita entre os imigrantes e refugiados. Aqueles que são expulsos de suas casas porque as condições concretas tornaram-se humanamente insuportáveis e ameaçam a integridade da vida, esses são considerados refugiados. A esses é garantido o direito de buscar refúgio em outro local.
Em agosto, a mídia não mais pôde calar-se para as centenas de milhares de refugiados que saíam da Síria, do Afeganistão, do Iraque, e de países Africanos e buscavam abrigo em outros países com economias e governos estáveis da Europa. No país que escolhi morar, grupos organizavam-se para pressionar o governo à conceder abrigo a estes refugiados.
Como imigrante documentada, eu tenho direito de sair e re-entrar no país que escolhi morar. Meu direito de ir e vir. Usando desse direito, em agosto eu viajei para visitar meu pai e família por três semanas em Belém, cidade do norte do Brasil que um dia foi pérola da Amazônia.
Parto em um longo voo na noite do dia 13 de Agosto. Chego ao Brasil na tarde do dia 14. Nos aeroportos as televisões noticiam da chacina acontecida na noite anterior cidade de Osasco, São Paulo, onde 18 (ou 19, depende de quem conta) pessoas foram assassinadas por um esquadrão que tem policiais do estado envolvidos. Comento da atrocidade noticiada com um senhor sentado ao meu lado na última escala do voo de Brasília para Belém. Com a rapidez de quem quer se desvencilhar de um chato inconveniente, ele diz que era uma pena o ocorrido, porque parece que os mortos eram todos trabalhadores. E, emtom profético avisa, “a situação não está fácil. E só vai piorar.” Não era o que esperava escutar ao chegar para visitar o país que nasci.
Ao sentar para assistir aos telejornais locais depois do jantar, estranhei que nas entrevistas os familiares dos mortos descrevem seus filhos, maridos, amigos, sobrinhos, primos, netos, companheiros como trabalhadores. Lembrei-me do comentário do senhor no avião. Ocorreu-me uma profunda inquietação. Soava aos meus ouvidos que havia uma intenção da mídia brasileira de justificar a repugnante matança caso as pessoas assassinadas fossem bandidos. E, por outro lado, os familiares dos mortos, tentavam defender a imagem dos seu. Eu não conseguia entender como o ato de matar pessoas poderia ser justificado. Deu vontade de gritar. Nem trabalhador e nem bandido deve ser morto nas ruas por policiais do Estado de um país civilizado! Absurda bárbarie! Eu gritei, mas em silêncio.
No outro dia procuro notícias sobre os mortos. Os trabalhadores mortos estavam em bares conversando com amigos e tomando cerveja, ou caminhavam na rua, ou só estavam na frente de suas casas conversando. Me parece que o problema deles é que estavam todos no mesmo ugar. Estavam na periferia.
Minha família mora na periferia de Belém. Periferia, assim me parece, é o mesmo em todo lugar. E na periferia a situação é de clausura. Na periferia o ir e vir é limitado à certas horas e com precauções. É perigoso estar do lado de fora na periferia. A vida é com medo na periferia, porque ela é narrada como de menos valor. São milhões de vidas menos valoradas. Quem vive na periferia são os refugiados econômicos: os que não têm dinheiro, não têm emprego, não têm escola, não têm casa, não têm água encanada ou energia elétrica – apesar de pagar a conta todo mês – não têm esgoto, não tem calçada, não têm posto de saúde, não têm hospital, não têm praça, não têm lazer, não têm segurança, não têm conta no banco. Os refugiados das periferias brasileiras não têm nem mesmo a voz de solicitar refúgio, abrigo, empatia, humanidade.
Dois dias depois, no dia 16 de agosto, a classe de cidadãos que não tem medo de sair para tomar cerveja no bar com os amigos, porque ninguém aparecerá encapuzado para matá-los, saiu às ruas para protestar contra a corrupção e tirou selfie abraçada com a polícia – instituição estatal – que estava envolvida no assassinato das19 pessoas de Osasco três dias atrás. Ninguém protestou a chacina ocorrida.
Neste violento palco de embates humanos, os pobres do Brasil estão sendo mortos diariamente em números alarmantes pela polícia estatal, pelas políticas sociais de desvalorização da vida, da saúde, da cultura, do trabalho e da educação. As mortes das inteligências e dos corpos dos pobres do Brasil alimenta a corrupção brasileira que necessita da ignorância, da desconfiança e do medo para se sustentar. A situação nas periferias brasileiras está tornando-se insustentável para a integridade da vida humana.
Será que as classes dos poderosos brasileiros abrirão seus condomínios fechados para os refugiados das periferias do Brasil, ou só os refugiados de longe podem receber a simpatia dos poderosos brasileiros?
Eu estava ali na periferia, indignada com a desumanidade da vida diária e desconfortável com meu privilegio. Eu era uma migrante. Eu tinha poder de escolhas. Todos os outros eram refugiados, sendo expulsos de suas vidas. Sem ter para onde ir, a vida é resumida: uma conversa na frente na casa. Mas, cuidado!
Quando refletia sobre estes acontecimentos, eu lia o livro Dora Bruder de Patrick Modiano, escritor Francês ganhador do Nobel de Literatura em 2014. Dora era uma adolescente de família de imigrantes judeus que foi deportada e morta nos campos de concentração nazista. Foi a leitura do livro de Modiano que me levou a querer descobrir a identidade dos 19 mortos de Osasco, mas eu não tive o fôlego e coragem do escritor Francês. Mas fica a recomendação.