Atul Gawande & Roz Chast: A nossa sorte de ficarmos gagás e incontinentes
O celular tocou. Sempre olho para saber quem é antes de intencionalmente dizer “alô!” Era a minha irmã Maria. Quando é ela no meu visor eu atendo imediatamente. Maria mora com papai e é sua principal cuidadora. Eu sabia que papai, de 87 anos, diagnosticado com Alzheimer há 15 anos, com outras demências não especificadas, de corpo fragilizado e sem controle de suas funções básicas, estava hospitalizado com febre. Com voz aflita ela me conta que no hospital da Unimed, em Belém, onde papai estava internado recuperando-se de uma pneumonia por aspiração de alimentos, o médico havia instalado uma sonda alimentar gastro-nasal e estava assinando os documentos para a liberação do paciente para cuidados em casa. Mas Maria, seguindo o que nós filhos havíamos decidido, recusou levá-lo para casa com aquela sonda e ainda solicitou o serviço de “home-care” para acompanhar a recuperação do meu pai em casa. O médico responsável recusou remover a sonda, ameaçou de convocar o Ministério Público e chamar a polícia para prender a minha irmã por “maus tratos” a um idoso. Mais do que nervosa com a estúpida ameaça de alguém que, naquele momento, tem um status de poder [o tal médico], ela estava absolutamente enfurecida pelo golpe de acusá-la de mau tratar alguém.
Levou horas, mas a situação foi resolvida com a Unimed liberando meu pai sem a sonda para casa e com o serviço do “home care.” A minha irmã em estado de choque precisou ser medicada. Apesar da minha insistência, ela não quis processar o tal médico por abuso de poder, coerção, humilhação pública e mais muitos outros desrespeitos que poderiam ser listados.
Esse acontecimento me fez pensar no trato que damos ao envelhecer. Muitas perguntas surgem.
Quem tem o direito de decidir pelos velhos como tratar seus últimos dias de vida?
Onde a qualidade da vida estanca e onde começa a tortura do prolongamento da manutenção da vida biológica?
A prioridade deve estar na doença intratável ou na vida que resta?
Essa última pergunta foi o quê marcou a diferença entre o tal médico e Maria. O tal médico tinha seu foco no tratamento do problema sem preocupar-se com a implicação que teria para a qualidade da vida que resta. O foco da Maria estava na dignidade da vida que se esvazia. Ao meu ver, não há necessidade de haver zona de guerra entre família de idosos incapacitados e médicos sobre as escolhas éticas de como viver a vida no seu final. Ao meu ver, há uma necessidade da medicina de se humanizar e oferecer opções de assistência domiciliar como serviço público de atendimento.
Maria, falando pela família, recusou a implantação da sonda porque isso implicaria manter meu pai amarrado na cama o dia todo para que ele não retirasse o dispositivo implantado no seu nariz. Suas mãos já estavam inchadas pelo esforço que ele fez no hospital para se livrar das amarras. Caso ele removesse a sonda, ele precisaria ser levado ao hospital para através do raio x conseguir reimplantá-la no lugar certo. A sonda lhe doía enormemente o nariz e a garganta. A sonda deveria ser manuseada em ambiente de total esterilidade para evitar infecções. A sonda não garantiria que ele não teria outras infecções. E para mim o mais importante dos motivos foi, ele havia pedido para ir para casa porque ele queria tomar café e comer peixe frito. Ele não poderia nunca mais comer alimentos com a sonda. Mesmo explicando seus motivos, o tal médico recusava-se a enxergar o outro lado.
Porque a medicina precisa impor às famílias como zelar pela vida no seu final?
Prefiro ver meu pai em seus últimos dias de vida desamarrado, ouvindo as vozes dos que estão sempre perto dele e ainda sentindo o prazer da comida na sua boca. O corpo ainda é do meu pai, e o corpo dele não deve ser violado pelos instrumentos médicos se ele ou a família não desejarem.
Maria além de cuidadora de meu pai, trabalha oito horas por dia em um emprego que lhe demanda grande atenção e dedicação. Lembro que minha mãe cuidou de sua mãe idosa e de sua sogra. Minha mãe trabalhava em casa cuidando de cinco filhos, marido, enteado. O cuidado de mais um se encaixava na sua rotina. Mas a minha geração tem empregos em escritórios, salões, bancos, empresas, laboratórios, construções, restaurantes, padarias, livrarias, salas de aula, lojas, galerias, ateliês, teatros. Meus irmãos e irmãs, todos trabalham, todos tem suas preocupações com suas famílias, todos tem suas necessidades de buscar descanso e lazer. Como cuidar de nossos velhos incapacitados quando vivemos sobrecarregados com vida do trabalho? Principalmente, como pagar para cuidar de nossos idosos se não trabalharmos? Mesmo com o trabalho, o custo com enfermeiras, cuidadoras, aluguel de equipamentos hospitalares, remédios, fraldas, etc, é muito alto. Economistas dizem que o custo de cuidados com os idosos é de R$ 144.000,00 por ano (ver aqui) Como sustentar isso? A aposentadoria do meu pai de R$ 800,00 mensais não cobre metade dos gastos na farmácia.
Este parece ser um grande desafio para a minha geração. A promessa dos nossos tempos de vida longa aos nossos pais e a nós aconteceu, mas a nossa flexibilidade de estar disponível para oferecer cuidados foi extinta. O custo é alto e o fardo é imenso.
Assim como nós, meu pai não tinha a intenção de ser fardo para ninguém. Mas não houve outra opção para ele. Em Belém não há serviços de “casas de repouso” para cuidar de idosos e se houvesse os custos são inimagináveis. Nas cidades em que há tais serviços, a mensalidade está em torno de R$ 3.500,00 além dos custos com fraldas, remédios, etc. Impossível para as famílias! Será que haverá opções para nós? Que programas estamos construindo para nos assistir na velhice?
Eu falo no plural porque o problema não é individual, de cada um cuidar de si. Mas, é um problema social. Precisamos encontrar soluções para todos nós sobre como cuidar de nossa velhice, assim como precisamos encontrar soluções coletivas para salvar o planeta.
Recentemente, eu li dois livros muito interessantes sobre o assunto. O primeiro do médico cirurgião Atul Gawande, de origem indiana mas que reside em Boston, EUA, com o título de “MORTAIS: Nós, a medicina e o que realmente importa no final.” No livro, Gawande discute exatamente o problema vivido por Maria com o tal médico e aconselha com profundo candor e grande eloquência de seu extenso conhecimento que os médicos precisam escutar seus pacientes e suas famílias, precisam lidar com suas próprias angústias com a morte e, ainda, que não há nada de errôneo em administrar tratamentos paliativos para dignificar a vida em seu final. Gawande escreve o livro a partir da experiência de morte de seu pai, um também cirurgião, que recusou tratamento para um tumor na coluna vertebral.
Outro livro, que infelizmente ainda não chegou no Brazil, que desnuda as nossas culpas, conflitos, remorsos, desgostos, impaciência, amor, dedicação e compaixão ao cuidar de nossos pais idosos, gagás, incontinentes é o livro da cartunista Roz Chast, do New York Times, intitulado “CAN’T WE TALK ABOUT SOMETHING MORE PLEASANT?” (Podemos falar de algo mais prazeroso?). Roz conta de seu próprio calvário ao precisar cuidar de seus pais de 95 e 97 anos. Revela seu desconforto de precisar cuidar da mãe que nunca lhe demonstrou amor e do pai paranoico e totalmente escravizado no domínio da mãe. Um livro em que cada cartoon desenhado é uma mensagem para além da superfície da pele. O final do livro, quando a mãe de Roz morre, ela não sabe o que fazer e desenha a mãe. Um livro que quando eu li eu tive que parar várias vezes para enxugar os olhos e não deixar as lágrimas marcarem as páginas, afinal era um livro emprestado da biblioteca.
Toda essa reflexão me faz pensar sobre a minha velhice.
Considerando que teremos a sorte de ficarmos gagás e incontinentes, tu sabes como queres viver teus últimos dias?
Estou interessada em ouvir e trabalhar em opções de velhice dignificada. Alguma ideia?
Vida longa e boa semana a todos!