Companhia Matéria - Uma crônica ordinária.
Meu filho na casa do avô. Meu marido na mesma casa com seu pai. Eu sozinha em nossa casa durante todo o final de semana. Felicidade esquecida de ter os dias com todos os seus segundos só para mim!!! Na sexta-feira escrevi, tomei café da manhã longo e devagar, li, andei de bicicleta, fiz yoga, almocei, lavei o cabelo com calma, sequei-o com escovas que enrolam e demoram um tempo danado para ficar legal, li mais, desenhei, jantei salada, fui à um concerto de música, tomei drinks com amigos, voltei pra casa, vi um filme francês e dormir tarde. Sábado chuvoso, acordo, faço meu chá e volto pra cama para ler e tomar chá, passo o dia na cama lendo e escrevendo, paro para jantar e ver mais um filme. Domingo de sol, escrevo, tomo café mais um delicioso café da manhã, escolho uma roupa que me inspire, coloco minha bolsa de canetas e meu caderno de número 4 dentro da minha bolsa e vou para o museu ver pintores modernistas, primeiro passo na livraria para ver as novidades, depois do museu em sento na praça modernista para apreciar a tarde de sol e escrever.
A imagem das cadeiras, do sol, da tarde, das pessoas, do verão é demais. Eu preciso registrar isso! Pego o celular para tirar fotos.
Volto ao banco modernista onde sentava. Minha caneta, cadê? Olho em volta, olho para frente, para trás, olho para a direita, para a esquerda, olho dentro da minha bolsa, olho nos meus bolsos, olho no meu caderno número 4, olho no chão. Não vejo a caneta. O banco modernista é uma escultura ondulada de madeira com frestas. Olho na fresta. Vejo a minha caneta caída dentro do banco. Deve ter escorregado entre as frestas quando eu a deixei no banco e saí para tirar fotos. Bobinha, eu pensei, agora é só afastar o banco e pegar a caneta. Mas era impossível mover o banco. Pensei em chamar alguém para me ajudar, mas me convenci da impossibilidade da tarefa. O banco não estava chumbado no chão por nada além do seu peso irremovível. Eu não tinha nenhum arame ou pauzinho para cutucar a caneta.
Fiquei ali deitada com a cabeça no banco e o olho ajustando o foco na greta. Minha caneta prateada com sua ponta dourada deitada no pedaço de chão sujo coberto pelo banco que ninguém vê. Minha caneta tão perto... mas não acessível. Eu tão perto ... mas não acessível. Às vezes nem para mim mesma eu sou acessível.
Minha caneta ficou dentro de gavetas por 17 anos. Foram várias gavetas em diferentes casas, cidades e países. Minha orientadora de mestrado me presenteou a caneta prateada com a ponta dourada em 1998. Fiquei comovida com o presente. A caneta veio em um estojo de luxo de veludo cinza. Guardei para usá-la em ocasiões especiais. Quando eu precisasse assinar algo importante, ou escrever uma carta para alguém importante. Pensei em usá-la para assinar a minha certidão de casamento. Casei em 2000 e esqueci. Assinei várias coisas importantes com outras canetas e não escrevi cartas à mão para ninguém. Dentro do seu estojo confortável e luxuoso ela me fazia companhia. Tinha medo de perde-la e por isso não a levava na bolsa. Quando eu comecei a dar aulas como professora da universidade em 2006 eu decidi que eu precisava ter uma boa caneta na bolsa para impressionar, a tirei do estojo e a levei comigo. Nesse dia uma aluna esquece a caneta e me pede uma caneta emprestada. Eu paralisei. Ela iria usar a minha caneta prateada com ponta dourada antes de mim! Com um sorriso absolutamente sem graça, eu tiro a minha caneta da bolsa e lhe estendo, nesse instante outra aluna lhe oferece uma caneta bic. Ela olha a elegância prateada da minha caneta e intimidada aceita a bic da sua colega. Fiquei aliviada. Quando cheguei em casa eu a deitei novamente dentro de seu estojo de veludo macio e a coloquei segura dentro da gaveta. Sua beleza e elegância também me intimidava. Eu não a via como uma caneta da vida ordinária. Mas não tinha nada melhor para oferecer-lhe.
Na última mudança de casa, a caneta subiu do hemisfério sul para o norte. Quando a desempacotei, tratei de acomodá-la no seu estojo em uma gaveta na mesa onde eu escrevo. No hemisfério sul comecei a escrever e desenhar mais. Lápis e canetas passaram a ter um valor especial para mim diariamente. Comprei uma bolsinha confortável para acomodá-los. Não saía mais de casa sem a minha bolsinha de canetas. Experimentei várias canetas de cores diferentes em escritos dolorosos, engraçados, ridículos, tristes, paspalhões, descritivos, narrativos, comoventes. Um dia, em Junho, eu lembrei da minha caneta prateada de ponta dourada. A tirei do seu estojo luxuoso. Escrevi uma frase com ela. Não pude acreditar que mesmo depois de 17 anos, sem nunca ter sido usada, quando eu a rodei para sua ponta aparecer e com cuidado a coloquei no papel para escrever uma frase, ela deslizou. Não estava dura, travada, com a tinta envelhecida. Não. Ela escreveu macio, fino, preciso. Parecia que sempre esteve lá pronta, de prontidão, a minha espera. Depois escrevi um sonho com ela. Depois escrevi uma receita de bolo de chocolate feito com farinha de amêndoas. Depois escrevi um conto. Depois escrevi sobre uma velha que vi na rua. Depois eu não conseguia mais usar outra caneta.
Nossa intimidade só tem um mês! Não posso perde-la. Passamos o final de semana mágico juntas escrevendo indagações para o texto da Edith Pearlman. Sou grata pelo veludo da sua tinta, a maciez de sua esfera e a precisão do traço no meu ‘r’ ‘s’ ‘m’ ‘p’. A sua tinta azul marinho é pacífica. O metal de seu corpo me esfria e aquece os dedos. Com o peso na extremidade, ela repousava inclinada dentro do círculo feito pelo meu indicador e polegar direitos. Ali encaixada na almofada do meu polegar ela deslizava no papel. Sua tinta não falhava mesmo quando escrevia deitada na cama. Preciso encontrar um jeito de resgatá-la. Me sinto ridícula. E se fosse um cordão de ouro? Ou a chave da casa? Ou a única foto da mãe morta? Ou a única prova de DNA do filho desaparecido? Me sentiria diferente? Quais os objetos são mais importantes?
Eu posso escrever com outra caneta. Eu posso tentar comprar outra caneta igual. Eu posso deixar ir e lamentar a minha perda. Posso. Mas não quero.
Tenho outras escolhas que posso fazer. Enxergo as minhas circunstâncias.
Vou deixar a caneta ficar por agora. Vou pedir ajuda. Vou traçar um plano de resgate. Vou acreditar na sua volta. Não na sua volta mágica. Mas na volta produzida pelo meu esforço. Na volta desejada e buscada.
Ontem, depois de seis dias, voltei ao banco da praça modernista com meu marido e filho, equipados com nossas mentes criativas e mãos competentes, imãs potentes, fios, uma trena metálica e lanternas do celular. Ela estava caída no mesmo lugar com folhas secas em volta. Havia tomado chuva e sol. Foram trinta minutos de movimentos e trocas de informações entre meu parceiro no resgate e eu. Ao final a caneta estava de volta na minha mão e eu não pude esperar para escrever no meu caderno de numero 4!