Elena Ferrante e Malala - Livros para um mundo amoroso

Professora Oliviero: “Você sabe o que é a plebe, Greco?”

Elena Greco: “Sim, o povo, a tribuna de pessoas no governo Gracchi.”

Professora Oliviero: “A plebe é uma coisa completamente desagradável.”

Elena Greco: “Sim.”

Professora Oliviero: “E se alguém deseja permanecer plebe, ele, seus filhos e os filhos de seus filhos não merecem nada. Esqueça a Cerullo e pense em você mesma.”

Ilustração de Francesca Agiolillo

Este diálogo marca talvez o ponto onde as vidas de Elena Greco (chamada de Lenuccia ou Lenú) e Rafaella Cerullo (chamada de Lina por todos, e Lila por Elena) distanciam-se de forma imprevisível para ambas, sem, contudo, inibir as conexões forjadas na vizinhança pobre e violenta de uma baixada napolitana do pós guerra experimentadas pelas amigas Elena e Lila no livro “A Amiga Genial” de Elena Ferrante.

O livro, primeiro de uma série de quatro, é narrado na voz de Elena que logo no inicio do livro introduz dois temas que são caros na narrativa de Ferrante: conexões, fraturas e literatura & mitos femininos (maternidade, por exemplo). O livro começa com o filho de Lila ligando para Elena dizendo que sua mãe, neste momento aos sessenta e seis anos, desapareceu sem deixar vestígios. Elena se aborrece com a falta de astúcia, inteligência e tutano no filho de Lila e diz a ele para “por favor, uma vez na vida comporte-se com ela gostaria: não procure por ela. [...] Aprenda a ficar em pé com suas próprias pernas e não me ligue mais.” E brava com mais um ato de desafio de Lila ao destino, dessa vez fraturando sua conexão na tentativa de apagar o rastro de sua vida, Elena inicia a escrever narrando a estória das duas lançando a aposta “Vamos ver que ganhará desta vez.” Com a estória contada através do registro escrito, Ferrante então nos diz que a literatura tem o papel de preservação de nossa continuidade e existência. Ela usa da literatura para contar a estória dessas duas personagens femininas revelando as complexidades dos clichés aprisionantes dos papéis domésticos e maternos.

Ilustração Heloiza Barbosa

Em uma vizinhança miserável onde espancamentos de filhos, surras em mulheres, agiotagem, poder imposto pela força e pelo dinheiro, brigas com facas e outras armas, faz parte da rotina, Elena e Lila tornaram-se amigas e essa amizade influenciou o destino das duas. Elena Greco, é a filha mais velha de um contínuo da prefeitura que tenta sustentar a sua família de quatro filhos e a esposa com seu ínfimo salario. Lila é filha do sapateiro e irmã mais nova de Rino. Logo no inicio do livro, Elena Ferrante oferece um índice dos inúmeros personagens que farão parte de seus quatro livros, serão nove famílias e mais outras figuras que estarão presente nesta saga romanesca da vizinhança pobre de Nápoles.

Lila é descrita na narrativa memorialística de Elena como determinada, ágil, corajosa, perspicaz, inteligente, magra, mordaz, bonita desde a tenra infância. Elena descreve a si própria como aplicada, esforçada, dedicada, gordinha, com espinhas e sem charme. A inteligência e rapidez de pensamento que para Lila parece acontecer sem esforço, para Elena, contrariamente, demanda muita energia, atenção e dedicação. Os professores da escola do primeiro ciclo do ensino fundamental (1ª á 5ª séries) dessas crianças da vizinhança logo se encantam com os dotes de Lila. Elena, com ciúmes da atenção dos professores à Lila, esforça-se para ser notada. Essa rivalidade é uma das marcas da amizade entre as duas. Nenhuma das duas meninas sabem o que acontece depois da 5ª série, não é esperado que as duas prossigam na escola depois dessa série. Mas a professora Oliviero, investe no potencial das meninas. As duas precisam fazer um teste de admissão para o segundo ciclo. É necessário aulas de reforço particulares para preparem as duas para o teste. Mesmo com a fúria da mãe e a contrariedade do pai, o pai de Elena concorda em pagar pelas aulas. O pai e a mãe de Lila se recusam violentamente, mesmo com o apelo da professora, que raivosamente diz a Elena o que será o destino de Lila: ser plebe. Será?

Elena avança nos estudos com dificuldades. Recebe ajuda especial de Lila, que mesmo fora da escola não abandona seu amor pelos livros. Elena termina o segundo ciclo. Nada conhece do que existe depois da 9ª série. Não acredita na sua sorte quando mais uma vez a Professora Oliviero convenceu seus pais de que ela precisa continuar a estudar e que ela, a professora, ajudará com as despesas dos livros do ensino médio. Elena continua no ensino médio. Lila inventa um rumo diferente à sua vida. Elena descreve Lila como genial, mas é da boca de Lila que ouvimos “Você é minha amiga genial, você deve ser a melhor de todos, meninos e meninas.” Quem será a amiga genial dessa estória? A que com esforço e dedicação constrói uma alternativa de vida para além das fronteiras limitantes do bairro miserável? Ou, a que fez uma limonada com os limões que a vida lhe deu? Ou as duas juntas, pois uma só existe por causa da outra?

Ferrante escreve o livro com uma honestidade nua de floreios, mas com uma sensibilidade para as dores da miséria de grandiosa beleza. A ligação entre a miséria do bairro napolitano e qualquer outro bairro pobre de qualquer outro lugar do mundo pode ser estabelecida imediatamente. As pessoas que no Brasil lutaram imensamente para terem acesso ao ensino universitário, por exemplo, terão empatia com a culpa e o sofrimento de Elena. Culpa de sentir-se distanciando-se das pessoas do bairro a cada mais tempo que passa nutrindo conhecimentos em sua mente e expandindo suas fronteiras culturais. Sofrimento porque ela não pode salvar Lila da opressão da pobreza.

A discussão do papel da formação acadêmica cultural para uma sociedade equilibrada e feliz está presente no livro de Elena Ferrante. Em um trecho sobre um artigo que Elena escreveu e tirou nota máxima do professor de Latim, após discutir com Lila a tragédia de Dido (apelido da rainha Elissa de Cartago na África) que destrói a terra e morre porque não tem o amor de seu amante, fica clara a intenção da escritora de nos levar a questionar os mecanismos da formação cultural do homem.

“Professora Galiani, uma mulher altamente admirada mas temida, porque ela poderia desmantelar qualquer argumento sem uma sólida base, parou-me nos corredores da escola para falar com particular admiração sobre a ideia, central ao meu artigo, que se o amor for exilado das cidades, a natureza benevolente das mesma torna-se maléfica. Ela perguntou-me:

“ O quê ‘uma cidade sem amor’ significa para você?”

“ Uma pessoa privada de felicidade.”

“ Dê-me um exemplo.”

Eu logo pensei das conversas eu tinha tido com a Lila e o Pasquale [menino militante do bairro pobre] em Setembro e rapidamente eu senti que eles eram a verdadeira escola, mais verdadeira que a escola que eu ia todos os dias.

“ Itália sob o domínio facista, Alemanha sob o domínio nazista, todos nós seres humanos no mundo hoje.” ***

E aqui a autora novamente complica a nossa vida. Quando pensamos que ela escreverá sobre como a escola pode salvar o mundo, ela nos diz através do pensamento de Elena que as ideias de seus amigos da baixada são mais verdadeiras do que as coisas que ela aprende na escola. Talvez alguém pode encarar isso até como uma obviedade, mas o que é interessante na narrativa do livro é a tensão entre uma ideia de educação e uma ideia de formação. Ferrante não se coloca contra uma formação intelectual, mas ela alarga o conceito. Podemos ler nas entrelinhas de Ferrante a ideia de formação como um conceito mais ampliado dentro do qual está a escola, mas também está a cidade, está a arte, a ética, a estética. Neste sentido, podemos dizer que as novelas napolitanas de Elena Ferrante são romances de formação.

A minha identificação com o livro “Minha Amiga Genial” de Elena Ferrante é direta e imensa. Eu nasci em um bairro miserável da periferia de Belém, no Pará. Sou filha de um marceneiro analfabeto e de uma mãe lavadeira, também analfabeta. Não foi a escola sozinha que me fez sair da profecia feia, discordante e sem sentido da pobreza, mas foram também as aulas de teatro; a vivência com programas de artes do governo; as oportunidades de ler livros em bibliotecas públicas, de ver concertos de músicas gratuitos em programas culturais; as chances de participar de debates públicos gratuitos sobre comportamentos, valores, política; as possibilidades de trabalhar sob a supervisão de profissionais experientes, dialogar, trocar ideias e experiências; a existência da “meia-passagem” nos ônibus para ir e vir (imagina só se o passe fosse livre, como seria magnífico!); ir ao cinema gratuito nem que fosse só uma vez por mês; como também, os espaços democráticos de lazer com segurança nos parques e praças da cidade. Uma cidade com amor (amor = cuidado, zelo, atenção) faz seus habitantes florescerem. Isso é um projeto urbano de formação humana.

Mas parece que no Brasil estamos caminhando para a direção oposta à este projeto de formação humana urbano. Foi com tristeza, raiva, indignação que eu li no excelente blog Todoprosa do escritor Sérgio Rodrigues, que o governo federal e governos estaduais, como no caso do governo do estado de São Paulo, suspenderam a compra de milhões de livros didáticos e literários para as escolas e bibliotecas, e desde de 2013 estas instituições não recebem os livros tão essenciais. Mas como o cinismo na política é desmedido, ao mesmo tempo que o governo corta o orçamento dedicado aos livros, o Ministério da Cultura pretende lançar mais uma campanha arrogante, sem graça e pífia de estímulo à leitura. O fato motivador da campanha, segundo o ministro da cultura Juca Ferreira, é que o brasileiro lê 1,7 livro por ano, número absolutamente vergonhoso. Sim, sem dúvida alguma, uma vergonha!

Mas, ainda mais vergonhoso é o índice mencionado por Sérgio Rodrigues de analfabetismo funcional – a pessoa que lê um texto simples e consegue interpretá-lo apenas minimamente – do Indicador de Analfabetismo Funcional (Inaf), da ONG Ação Afirmativa e do Instituto Paulo Montenegro, que Sérgio interpreta da seguinte forma:

Atenção para a obscenidade: apenas um em quatro (!) brasileiros pode ser considerado plenamente alfabetizado. De cada três universitários, um não tem alfabetização plena (!!).”

Então, diante desses números vexatórios, eu encho meu espirito com as palavras de Elena Ferrante:

“Quando não há amor, não somente a vida das pessoas torna-se estéril, mas também a vida das cidades.”

Esta semana, Malala, Premio Nobel da Paz, que completou 18 anos lançou a seguinte campanha no twitter  #BooksNotBullets  (#LivrosNãoBalas), onde ela pediu que pessoas postassem fotos com seus livros prediletos. Malala sabe que uma poderosa força para a construção de uma sociedade forte, feliz e segura está na formação cultural de seu povo.

 

Uma transcende leitura de “A Amiga Genial” para todos! Beijos e até semana que vem.

*** Minha tradução da publicação em Inglês  My Brilliant Friend