ABIGAIL THOMAS: três cachorros, uma escritora e nós.

Cada um tem seus favoritos dentro de vários gêneros, categorias e classes de coisas e pessoas. Cada um tem travesseiro favorito, comida favorita, jeito favorito de tomar café, roupa favorita para dormir ou para ir a um encontro importante, sapato favorito para caminhar longa distância e outro para ir no cinema, amiga favorita para conversar sobre livros, outra para chorar quando precisa, outra para tomar um chopp e outra para viajar quando pode. Até mãe tem lá seus favoritos entre suas crias.

Eu tenho vários favoritos catalogadas em milhares de categorias. Como eu gosto de fazer listas de qualquer coisa, eu tenho as minhas listas de favoritos espalhadas nos meus inúmeros diários que escrevo por muitos anos. Tem algumas listas que revelam como eu fui adolescente nos anos 80. Eu gosto de olhar de vez em quando as minhas listas de favoritos para saber o quê ainda permanece na lista e o quê foi demovido da lista. Banana Split era a minha comida/sobremesa favorita em 1982, podia imaginar os restos dos meus dias comendo banana split. Em 2013 minha sobremesa favorita é torta de maçã feita pelo meu marido. Porque os nossos favoritos mudam com a gente, eu quero falar de uma autora que é agora a minha favorita: Abigail Thomas.

Eu descobri Abigail Thomas a quase um ano, quando eu fiz um curso curto sobre escrita criativa e meditação. A professora nos deu duas páginas de um texto dela. Para mim foi o suficiente para que eu me apaixonasse por aquelas palavras e voz única. Minhas paixões são obsessivas, então, eu logo estava cercada dos livros da Abigail Thomas. Diferente dos amantes, que além de obsessiva eu sou possessiva, com meus autores favoritos eu tenho um desejo quase incontrolável de dividi-los com todos os amigos e até os inocentes transeuntes que por ventura cruzam meu caminho. Pois eu tenho a convicção de que eles não sabem ainda como a vida deles está perdendo em qualidade porque eles não conhecem o meu autor favorito. Pior do que eu em voluntariar admiração só a minha amiga Marcia, que carrega a sua cópia do livro, mostra para a caixa do supermercado, pede para ela anotar o nome do livro e do autor e faz um resumo da obra em dois minutos, só porque a moça comentou que “no fundo todos nós viemos do mesmo lugar” ou coisa parecida. Eu adoro a paixão generosa dela.

Em abril, eu estava tomando café com uma amiga em Florianopólis, e queria muito que ela conhecesse a Abigail Thomas, mas eu não tinha certeza se seus livros haviam sido publicados no Brasil. Resolvi fazer uma pesquisa e fiquei feliz da vida em saber que seu livro de memórias A Three Dog Life (Uma Vida Entre Três Cachorros) foi publicado pela Editora Planeta em 2007. Porque eu moro em Boston e não tenho acesso aos livros em Português que não existam em versão eletrônica, eu vou apresentar à minha amiga e à todos vocês minha autora americana favorita com trechos do livro dela traduzidos por mim.

Em Uma Vida Entre Três Cachorros Abigail Thomas conta da tragédia que mudou a sua vida de forma inesperada, desesperada e definitiva. E ela começa o livro assim:

“Esta é uma coisa que permanece a mesma: meu marido sofreu um acidente. Tudo mais muda. Um neto precisa de mim e depois não mais. Meus filhos estão próximos e então um se distancia. Eu fumo e não fumo; eu tricoto ponchos, toucas, xales, toucas novamente, paro de tricotar, começo de novo. O relógio faz o seu tic-tac, as estações mudam, o céu da noite se reorganiza, mas meu marido permanece constante, suas lesões são permanentes.”

Assim Abigail Thomas se apresenta, sofrendo aos 63 anos com o atropelamento do marido que tem os ossos do seu crânio partidos em pequenos pedaços e seu cérebro para sempre lesionado, afetando sua memória dos eventos recentes dentre outras habilidades. As palavras de Abigail Thomas não têm excesso nem de ornamentação literária e nem de dizer além do necessário. As imagens invocadas pelo seu texto são diárias e poéticas:

 “Não tem nada como a calamidade para refrescar o momento. Ironicamente, nos últimos anos minha vida começou a parecer sem forma, como uma calcinha com o elástico esgarçado, os dias estavam parando no meu tornozelo. Agora tem uma intensidade na mais humilde das coisas.”

 Mas o livro vai além da dor, da interrupção da vida pela tragédia, da angústia de cuidar do marido que exige cuidados especializados 24horas. Abigail Thomas fala da vida que precisa ser enfrentada, repensada, reorganizada, reinventada; do “lugar” que precisamos para nos dar um sentido de pertencimento.

“E o que é casa senão aquilo que a gente costura a partir das mudanças de nós mesmos?”

 O acidente do marido, que muda a vida de Abigail Thomas, ocorre quando este está levando Harry, o cachorro recém adotado do casal, para a caminhada noturna do xixi. Depois do acidente, Abigail muda-se  do apartamento em Manhattan para uma casa em uma cidade menor. E para quem pensa que ela nunca mais iria querer ver cachorro na frente dela, Abigail Thomas adota mais dois cachorros, Rosie e Carolina. Uma Vida Entre Três Cachorros mostra essa relação de aconchego, respeito e amor que é tão preciosa e regenerativa para Abigail Thomas, assim como para Harry, Rosie e Carolina. E com seus cachorros Abigail aprende lições fisgadas pela sua observação sensível.

 “O passado não é tão interessante para mim agora quanto era quando eu era jovem [...] Não há nada que queira reviver – certamente não a juventude – e quanto ao que estar por vir, eu não estou com pressa. Eu observo meus cachorros. Eles se jogam inteiramente em tudo o que eles fazem; até o sono deles é feito com seus corpos e seus espíritos por inteiro. Eles não estão esperando por um amanhã melhor ou olhando para trás para os seus gloriosos dias. Seguindo os seus exemplos, eu estou tentando ficar no presente.”

 Se o passado é um terreno que Abigail Thomas não quer montar acampamento, o futuro também é um pedaço de terra que não lhe interessa.

 “Recentemente alguém me perguntou qual é o meu maior medo. Eu não consegui pensar em algo. Para ter medo você necessita imaginar o futuro e eu nunca mais penso no futuro. O futuro não é mais meu ponto de destino.”

“[...]Quando eu era jovem o futuro era onde todas as coisas boas eram mantidas, as roupas de festas, as lindas porcelanas, as pratas da família, os ótimos empregos.”

“[...] O futuro era também o lugar onde as coisas más estavam na espreita para te atacar na surdina. Meus filhos estavam embarcam em seus futuros em um frágil navio e eu tremia. Eu queria remover os obstáculos, amaciar o caminho, eu queria mudar as infâncias deles. Eu precisava estar certa o tempo todo, eu queria que eles me ouvissem, que aprendessem com meus erros e escapassem de muitos sofrimentos. Bem, agora eu sei que posso controlar a  minha língua, o meu temperamento e os meus desejos, mas isso é tudo. Não tenho nenhum poder sobre as intempéries, o tráfego, ou a sorte. Não posso fazer as coisas boas acontecerem. Não posso manter ninguém a salvo. Não posso influenciar o futuro e não posso consertar o passado. Que alívio!”

 Seu marido morre na instituição em que ele fica internado por cinco anos, e Abigail Thomas assim nos diz como ela está vivendo sem ele.

 “Eu tenho uma repentina visão da vida sem o Rich. Não seria como cair no espaço sem uma teia de segurança, seria como cair no espaço com paraquedas mas sem um planeta para aterrizar.”

“Eu estou bem sozinha. Eu nem sempre quero responder a pergunta de porque eu estou tossindo quando eu estou tossindo [...] Eu adoro não ser interrompida no meio de estar pensando sobre nada. Ninguém enxota meus cachorros do sofá ou se incomoda com os peidos de sardinha deles embaixo das cobertas da cama de noite. Eu gosto de mudar os móveis lugar sem ter ninguém para reclamar ou notar que eu mudei. Eu gosto de cozinhar e às vezes não, arrumar a cama ou não, jardinar ou não. Assistir filmes até  três da manhã [...] sem contar das sonecas.”

 As palavras de Abigail Thomas são irreverentes, carregadas de sentido e lacunas, propositadamente colocada para nós, leitores, preenchermos com nossas experiências. Ela não moraliza sua vida e nem tampouco a trivializa com tipos clichês. E é por isso tudo que ela é a minha escritora americana favorita Se você ainda não leu Uma Vida Entre Três Cachorros, por favor, leia! A beleza generosa e a honestidade crua de Abigail Thomas será apaixonante e uma boa companhia para o inverno que se aproxima.

Abigail Thomas com Cooper, Daphne, Carolina e Sadie

 

P.S – Quase dez anos depois do lançamento de Uma Vida Entre Três Cachorros, Abigail Thomas lança seu mais novo livro de memórias, agora aos 73 anos, com o título, livremente traduzido por mim, de “O Que Vem Depois e Como Gostar” (What Comes Next and How to Like it). Agora Abigail tem  quatro cachorros: Cooper, Daphne, Carolina e Sadie. Espero que o mesmo seja logo publicado no Brasil, pois é tão bom quanto o anterior.