Karl Ove Knausgaard e Empatia
Como a maioria de vocês já devem saber, eu estou escrevendo um livro que é baseado em algumas experiências pessoais e na minha imaginação dessas experiências. É comum que neste trabalho solitário de escrita que você procure outros, não para te distrair do teu foco obsessivo, pois quando você está mergulhada na feitura de uma estória você fica obsessivamente dentro da tua própria cabeça, zona, nuvem. Os outros que você procura são outros, que como você, estão em suas nuvens de escrita. No meio literário, essa busca tem um nome de workshop, ou oficina literária, ou como uma amiga diz: gente se reunindo para dar um toró de palpites. Eu apresentei um pedaço do meu livro nessa sessão de palpites. Meus outros colegas acolheram bem a minha oferta de um pedaço. Disseram que ficaram com gosto de quero mais, o que é um bom sinal para uma escritora iniciante.
Vários comentários e provocações foram feitas que me inspiraram diferentes percepções da estória que contei. Em um trecho da minha estória, eu conto: " quando eu cheguei para o funeral da minha mãe, minha irmã mais velha me recebeu, me abraçou soluçando e chorando. Eu a abracei e naquele momento eu não sabia o que fazer. Eu chorei porque achava que devia." Esse trecho incomodou um dos meus colegas da oficina literária. Ele disse que não poderia acreditar naquela reação, e que talvez houvesse mais ali do que eu, como narradora da estória, estava mostrando.
Um dos comportamentos estabelecidos nestas sessões de toró de palpites, é de que a pessoa que tem seu trabalho sendo analisado e esmiuçado, não pode falar nada. Ela precisa tomar nota dos comentários, palpites, sugestões, confusões, emoções dos outros ali presentes, suscitadas pelo trabalho escrito, e decidir o que fazer com aquilo tudo depois no silêncio solitário de sua escrita. Esse comentário de descredito e de desafio ao que está atrás das cortinas me incomodou. Na defensiva, eu pensei que ele estava projetando seus próprios desconfortos com um sentimento tão real mas nunca falado, ou confessado, em voz alta. Quem diz que no funeral da mãe chorou por convencionalidade? Minha escrita foi desafiadora e por isso ele reagiu a isso. Mas mesmo imaginando a minha defesa com convincentes argumentos que enchem o ego, eu sabia que havia algo mais que meu colega havia percebido e que precisava da minha atenção. Deixei de lado a minha inquietação e segui o ordinário da vida, que é o quê a gente faz quando não dá para encarar as provocações no momento.
Dois dias depois da oficina literária, eu abro para ler a revista The New Yorker daquela semana e lá há um artigo escrito por Karl Ove Knausgaard, [que é um escritor norueguês e autor dos livros absolutamente memoráveis sobre sua vida publicados em português pela Cia das Letras com o título de A Minha Luta Vol 1 e Vol 2 (terá seis volumes)]. Eu traduzo o título do artigo como: O Inexplicável: Dentro da Mente de Assassino de Massa (The Inexplicable – Inside the mind of a mass killer, May 25th, aqui está o link para o artigo em inglês: http://www.newyorker.com/magazine/2015/05/25/the-inexplicable).
No artigo, Knausgaard reflete sobre o assassinato de sessenta e nove jovens adolescentes norueguesês pelo seu compatriota Anders Behring Breivik; esse massacre aconteceu no dia 22 de Julho de 2011, quando Breivik invadiu uma colônia de férias para jovens e matou à queima roupa sessenta-e-nove jovens e outros oito, horas antes, quando ele detonou um carro bomba para distrair os policiais. Todos nós ouvimos sobre esse massacre. Todos nós ficamos estupefatos diante da televisão com a notícia de que em um país calmo, onde nem os policiais usam armas, próspero e organizado como a Noruega, tal bárbaro crime pode acontecer. Nós que estávamos acostumados a ouvir essas tragédias serem feitas em países como os EUA, por exemplo. Mas na Noruega! Nunca esperávamos.
O artigo é comovente e impossível não chorar lendo-o. Em certo ponto do artigo o próprio Knausgaard diz:
“Eu sinto repulsa em escrever sobre Anders Behring Breivik. Todas as vezes que o nome dele vem à publico, ele ganha o que ele deseja, e ele torna-se o que ele gostaria, enquanto aqueles que ele matou [...] perderam não somente suas vidas mas seus nomes – nós lembramos o nome dele (o assassino), mas eles (suas vítimas) tornaram-se números. Mas ainda sim, nós devemos escrever sobre ele, nós devemos pensar sobre a crise que as ações de Breivik representam.”
As palavras de Knausgaard me co-move, no sentido de movimentar em mim um sentimento de coragem, de pensar e falar do difícil, de buscar entender razões que provocam ações. Todos os tipos de ações. Até mesmo ações de brutalidade como essa. Não para justificar as ações ou atribuí-las características patológicas ou demoníacas, mas para perceber que por mais repugnante que sejam essas ações bárbaras elas são possibilidades humanas. Pensar sobre essas ações, e todas as outras nossas ações, é o jeito de nos protegermos da banalidade do mal, como alertou a filósofa Hanna Arendt. Mas pensar sobre algo, sobre nossas ações, é nos distanciarmos desse algo imediato para significá-lo ou re-significá-lo. Esse esforço do pensamento me parece envolvido com o sentimento de empatia.
Knausgaard continua no artigo sua reflexão:
“O feito de Breivik, sozinho matando setenta-e-sete pessoas, em grande parte um-a-um e a maioria olho-no-olho, não aconteceu dentro de uma sociedade em tempo de guerra, onde todas as normas e regras são suspensas e as instituições são dissolvidas; o mesmo aconteceu em uma pequena, harmoniosa, bem organizada e próspera terra durante período de paz. Todas as normas e regras foram anuladas no interior dele, a cultura da guerra tinha emergido dentro dele, e ele estava completamente indiferente à vida humana e absolutamente cruel. É para este ponto que devemos dirigir nossa atenção, para o colapso dentro do ser humano sobre o quê essas ações representam e o quê tornam as mesmas possíveis. Matar outra pessoa requer uma quantidade tremenda de distância, e o espaço que torna possível a existência dessa distancia apareceu dentro da nossa cultura. Este espaço [da distancia humana] tem aparecido entre de nós, e ele existe aqui, agora.”
A leitura deste parágrafo no artigo de Knausgaard instigou-me a continuar pensando sobre a distância que vivemos e a busca de empatia. É impressionante como sem o olhar no olho do outro tornou mais fácil falar indelicadezas e crueldades pela comunicação virtual. Se eu me distancio do humano no outro eu me distancio do humano em mim mesma. Mas é também impressionante como o espaço virtual criou, fortaleceu, possibilitou conexões entre o humano em mim e no outro.
São as nossas conexões que impossibilitam distâncias.
O médico que pergunta e escuta de forma presente, atenta, curiosa o seu paciente conecta-se com este com empatia.
O amigo que questiona e ouve a dor do outro conecta-se com empatia.
A filha que percebe que há mais na mãe do que ela pode ver a enxerga com empatia.
A arte, seja em que forma for, que nos atravessa e nos provoca olhar com curiosidade e imaginação para nossas ações nos possibilita experimentar empatia.
Empatia nos aproxima.
Passado mais dois dias após ler o artigo do Knausgaard e ter pensado sobre o sofrimento da distância e o bálsamo da empatia, eu retorno a pensar sobre o comentário do meu colega na oficina literária. Sim, ele tinha razão. Há mais sentimentos do que eu deixei transparecer. O que eu apressadamente julguei como uma ação em resposta a um dever (chorar no funeral da mãe porque era o que eu deveria fazer), mostrou-se agora mais claramente como um esforço de tentar entender o que estava me acontecendo. Eu não sabia o que fazer, eu não sabia o que pedir dos outros naquele momento. Eu fiz uma ação que era esperada: eu chorei. Uma ação. Um esforço. Uma busca de conexão, de prestar atenção, de expandir-me para caber os outros em mim. A ideia de esforço é uma ideia de ação voluntária, de escolha. Sim, empatia é uma escolha e ações não só expressam emoções como as criam.
A beleza nem sempre surge do perfeito, do harmonioso, do equilíbrio. Um artigo sobre uma ação humana repugnante me fez compreender uma positiva ação humana: empatia. A empatia pode nos proteger da banalidade do mal.