A Festa da Insignificância - Milan Kundera
A Festa da Insignificância
Alguns livros europeus chegam primeiro no mercado brasileiro e muito depois no mercado americano. Isso aconteceu com o último livro de Milan Kundera, “A Festa da Insignificância” que foi lançado em 2013 na Europa, foi publicado no Brasil em 2014 e só agora, em 2015 chegou nos EUA. Mesmo desapontada com o atraso de ler um livro daquele que foi um dos meus escritores prediletos durante os meus dezoito e vinte-e-poucos anos, fico eufórica esperando para a surpresa que ele me prepara. Os livros do escritor Milan Kundera sempre foram generosos em suas doses de surpresa, provocação e inquietação com a diluída separação ente literatura e filosofia que o autor professa.
Com dezoito anos li e reli incontáveis vezes o memorável “A Insustentável Leveza do Ser,” seu livro de maior repercussão, encantando-me com a descoberta da política nos nossos corpos, sexo, amores. Gostaria de atingir a leveza de Sabina, mas recuei ao sentir a dor de sua existência sem vinculação a nada e a ninguém. Encantei-me cm Teresa e a sua palpável vulnerabilidade. Experimentei o peso e o leve eternamente retornando, sendo re-sentido, como dizia Nietzsche.
Afirmei minha oposição ao aprisionamento dos casamentos e suas ilusões e mal entendido em seu outro livro “Risíveis Amores.”
Hoje sou casada, tenho muitos vínculos com muitas coisas e pessoas, mas as palavras de Kundera, insuflando meu pensamento com indagações em imagens absolutamente envolventes de sua narrativa, ainda são uma predileção minha.
Eu li o seu recente livro traduzido para o inglês, e por aqui o titulo recebido foi “The Festival of Insignificance,” eu particularmente prefiro a palavra “festival” no título em inglês do que a palavra “festa” do título brasileiro. Junto com “festival” vem a ideia de um arraial de coisas, é mais plural, e é justamente isso que este último livro de Kundera me parece ser. Com oitenta-e-seis anos, o autor escreve um livro leve, poucas páginas, com humor, deboche, escracho (comedido), uma mistureba inteligente de várias coisas e longe de suas ambiciosas obras do passado.
Na “Festa da Insignificância,” Kundera narra a interação de seus personagens em parques, em seus apartamentos em Paris, narra seus delírios, e até mesmo coloca-se na estória como o “mestre” que inventa os personagens e determina o que eles falam e onde eles falam. Todos estão dentro da festa, ou festival, o grande espetáculo da natureza humana.
E nessa festa, ou festival, a certeza é uma fantasia entretida. Todos os personagens questionam-se sobre tudo e ninguém se filia à nenhuma convenção. Um dos personagens mais velhos, por exemplo, se delicia com a fato de que quando você fica velho cada aniversario é uma dupla comemoração: da distancia do seu nascimento e da aproximação da morte. Esse mesmo personagem perversamente brinca com a morte ao contar para os amigos que tem câncer, embora seus exames atestaram negativo e ele está perfeitamente saudável. Eu acho que esse foi o jeito de Kundera em dizer que sabedoria não é uma condição automática da idade; mesmo velhos ainda somos e fazemos coisas estúpidas.
Nessa semana, eu estou pensando muito que nós, de fato, existimos entre os paradoxos. E minha surpresa foi enorme em identificar que o autor preferido da minha juventude também brincou com essa ideia. Ele narra como uma mulher inteligente se sente atraída por uma conversa entediante e banal de um sedutor de carteirinha. Um outro personagem é fascinado pelo jeito que uma pessoa relata de forma alegre a dolorosa morte de um conhecido em comum. Ele também conta que o ditador Stalin ficou comovido com a dor de bexiga de um funcionário e nomeou uma cidade com o nome dessa pessoa. Ele narra o sentimento de profunda aproximação de duas pessoas que não falam uma mesma língua. Paradoxos como estes – chatice/apelo erótico; morte/alegria; ditadores/piedade com pequenas dores; ausência de linguagem/aproximação – são estímulos interessantes da brincadeira deste autor.
Em “A Festa da Insignificância” Kundera não está preocupado em definir posições, ou em marcar o apogeu de sua carreira aos 86 anos. Ele está interessado em divertir-se ou ficar perplexo com as insignificâncias. Talvez isso já seja uma posição, não convencional, mas é. Eu, por exemplo, fiquei muito intrigada pela divagação insignificante de Alain sobre o umbigo ser uma parte do corpo feminino mais erótico para ele. Não há nada de profundamente sério nessa divagação. Como também fiquei perturbada e comovida com a imaginação da possível tentativa de suicídio de sua mãe por afogamento, matando por sua vez o jovem que tentou salva-la, e, tornando possível o nascimento de Alain, o qual mesmo assim foi abandonado pela mãe que nunca desejou seu nascimento.
No livro há espaços para essas divagações mesmo que perturbadoras. Há espaço para o pensar ocioso. Qual é mesmo o valor das insignificâncias?