Montaigne, Schopenhauer, Russell, Walter Benjamin - E o Respeito ao Tédio

Meu marido chegou em casa do trabalho, beijou-me e perguntou, “Como foi o dia? O que você fez?” Eu dei uma resposta rápida, “Foi bom. Fiz isso e aquilo, mais nada produtivo...”

Aquele “nada produtivo” ficou na minha cabeça latejando. Parei para pensar o que eu tinha feito durante o dia e escrevi o seguinte texto no meu diário:

" Nada. Visitei o site de várias universidades a procura de emprego...só...imprimi alguns anúncios de trabalho... depois matriculei o Xico na natação verificando o horário para não chocar com as aulas de saxofone, uma oficina de criação de objetos que ele faz e as aulas de desenho...e, nada... matriculei o Xico também no tênis e precisei mudar a aula de desenho de horário...foi só... escrevi três cartas de apresentação para os empregos e re-organizei meu curriculum-vitae... mas foi só isso... respondi e-mails de sobrinho que quer emagrecer, de mães que querem marcar play-dates para o fim de semana, de amigos que querem dizer oi e saber das novidades ... fiz nada mais... fui para yoga e almocei...só... tomei um chá... Xico voltou da escola as 2:45 da tarde e me conta do dia... lhe preparei um lanche ... nada além disso ... conversei com o Xico e disse que hoje, excepcionalmente, ele vai ter uma aula longa de saxofone ... mais realmente foi só isso que fiz ... levei o Xico para a aula de saxofone ... fui ao mercado comprar ingredientes para a janta ... passo na academia para malhar por vinte minutos, melhor do que nada ... busco o Xico na aula de saxofone ... levo para aula de matemática ... corro para casa para tomar banho ... foi só ... aí eu começo preparar o jantar, ravióli de espinafre e queijo gorgonzola com pêsto de manjericão, salada de alface e repolho roxo ralado com molho de gergelim e iogurte, brócolis ao alho e óleo ... vou buscar o Xico na aula de matemática ... marido volta do trabalho ... me beija, me pergunta do meu dia ... nada... pergunto do dia dele ... escuto de reuniões, de tensões com a data de entrega de um protótipo, de ansiedades com o novo engenheiro ... mais foi realmente só isso e mais nada ... ligo para a minha irmã ... meu pai continua internado na UTI, mas parece responder bem aos antibióticos ... falo de coisas engraçadas para distraí-la ... e nada mais ... tenho quatro New Yorkers acumuladas para ler ... tenho dois contos para ler e comentar para a minha aula ...vou para a cama dar conta das minhas leituras ... mais foi só isso. Não fiz nada."

Meu dia cheio até a boca de tarefas e cuidados e eu me culpando porque não fui produtiva!

O meu dia cheio de falsos nadas foi verdadeiramente cheio de medos do vazio. A exigência da produtividade incessante preenche os espaços e eu me perco na geografia desse território, e não reconheço a mim. O que conta como um dia produtivo?

Parece que há um acordo que se ocupar com as tarefas de cuidado não contam como algo relevante, é um nada. Ou ainda, que o  ócio, o tédio, o ficar de bobeira, o ruminar ideias, o cultivar pensamentos criativos, o meditar, o criar estórias, o refletir é luxo ou perda de tempo. Por que absorvemos estas ideias e nos cobramos?

Eu acredito que o tédio não é somente um sentimento adaptativo, mas vital ao ser humano. Incluído no tédio estão as faculdades de aquietar-se, silenciar-se, observar, atentar, refletir, todas essenciais para o corpo, a mente, as ciências e as artes em igual medida. Por que nos tornamos estranhos ao tédio, ao ócio, à reflexão?

Eu estava lendo a biografia de Jane Goodall, primatologista inglesa, e é notório que o importante trabalho científico dela exigiu o desenvolvimento de uma enorme capacidade para longas horas em silêncio, agachada, observando os chinpanzés e refletindo sobre seus comportamentos.

Mas já Arthur Schopenhouer, filósofo alemão do século dezenove, dizia das dores da vida esvaziada causadas pelo tédio e pelas atividades entediantes. Aliás ele dizia que para os que tinham dinheiro, o tédio era mais uma pequena chatice que seria eliminada com novas excitações, para os sem dinheiro, o tédio era uma verdadeira dor de uma vida sem sentido. Ele tem uma certa razão! Para uma classe social o ócio é luxo, para outra é o vazio de uma vida sem propósito. O tédio e o ócio podem ser forças construtivas e destrutivas.

Minha mãe falava sem parar que “cabeça vazia é oficina do diabo.”

Montaigne, o filósofo “blogueiro” do século dezesseis, em seu livro “Os Ensaios” escreveu um ensaio chamado “Sobre a Ociosidade” e lá Montaigne admite que para o ócio ser expansivo da alma humana é preciso certas direções e objetivos do espirito. Do contrario, alerta Montaigne

“ se não ocupamos [os espíritos] em certos assuntos que os refreie e contenha, atiram-se desregrados, para cá e para lá, no vago campo das imaginações. [...] A alma que não tem objetivo estabelecido se perde, pois, como se diz, estar em toda a parte é não estar em lugar nenhum.”

Bertrand Russell, filósofo inglês do século vinte, escreveu um livro intitulado “A Conquista da Felicidade” e nele o filósofo argumenta que ser capaz de aguentar e acolher certos momentos de tédio é indispensável para a felicidade, saúde e expansão do pensamento e criações humanas.

 “ Nós vivemos menos no tédio que nossos ancestrais, mas nós somos mais medrosos do tédio. Nós viemos a acreditar que o tédio não é parte da natureza humana, mas algo que pode ser evitado com suficientemente vigorosa busca de excitantes aventuras.” ***

Russell continua falando da necessidade de inserir, sem culpas, momentos de tédio, ócio, reflexões, divagações no nosso dia-a-dia.

“Uma vida muito cheia de aventuras e excitações é uma vida exaustiva. [...] Muita excitação não somente prejudicial à saúde, mas também destrói a sensibilidade do paladar das pessoas para os prazeres, fazendo com que as mesmas confundam prazeres superficiais com profundas orgânicas satisfações, esperteza com sabedoria, e uma aguçada surpresa com beleza [...] Ser capaz de suportar uma certa medida de tédio é, portanto, essencial para uma vida feliz, e é uma das coisas que deveria ser ensinado para as crianças pequenas.”***

Uma das passagens mais lindas que li sobre as mazelas de uma vida sem espaços reservado para o tédio, a imaginação, a contemplação, a reflexão, foi no livro “Iluminações: Ensaios e Reflexão” *** de Walter Benjamin. Nele Benjamin fala que na era da informação ninguém está parando para escutar estórias e que o desaparecimento dessa prática é causado pelo afastamento do tédio de nossas vidas:

“[O] processo de assimilação da estória contada, o qual é profundo, requer um estado de relaxamento que está tornando-se cada vez mais raro.  Sentir o tédio é raríssimo. Se dormir é o apogeu do relaxamento físico, tédio é o apogeu do relaxamento mental. Tédio é o pássaro dos sonhos que fica chocando os ovos da experiência. Seus ninhos – as atividades intimamente associadas com o tédio – já foram extintos das cidades e estão em declínio no campo também. [...] Contar estórias é sempre uma arte de repetir estórias, e esta arte está perdida quando as estórias não são mais retidas. Quando mais desligado das distrações o ouvinte está, mais profundamente o que ele escuta é gravado em sua memória. Quando este ritmo se estabelece, ele escuta as estórias de tal jeito que a capacidade preciosa de reconta-las vem à ele inteiramente. Esta, então, é a natureza da teia com a qual a capacidade de contar estórias é tecida.”***

Se a gente não parar para imaginar, para pensar, para ouvir estórias,  para contar estórias, o quê restará de nós?


*** Tradução minha do texto das obras lidas em Inglês.