A TERRA INTEIRA E O CÉU INFINITO

A Terra Inteira e o Céu Infinito

Aterrissei a poucas horas atrás. Eu li o último parágrafo, fechei o livro, e fui deixando aos poucos meu corpo voltar. Eu estava “viajando” no Japão. Uma baita diferença de fusos horários, de cultura, de língua. Mas, um gigantesco espelho de nós.

A viagem que fiz foi com Ruth Ozeki, escritora, poeta, cineasta, documentarista, monja zen-budista,  nascida e criada em Connecticut, EUA, de mãe japonesa e pai americano.

Pela escrita de Ruth viajei em uma inquietante trajetória que parecia que eu estava percorrendo “A Terra Inteira e o Céu Infinito,” o qual é título do seu livro, ou melhor, do seu pacote de viagem. Foram nove noites e oito dias de leituras intensas, curiosas, e da qual eu retornei não a mesma.

No início da viagem eu não estava muito acreditando que seria interessante. Sabe quando você vai só porque um amigo insistiu muito e, como você gosta do seu amigo, você decidiu ir mesmo sem vontade? Pois foi assim. Logo na primeira página tem uma poema budista sobre o tempo de ser* (que está no título original em Inglês: A Tale for the Time Being), esse tempo que inclui todos os seres do planeta.

“Um velho mestre falou:
O Ser-Tempo se ergue nos mais altos picos das montanhas;
O Ser-Tempo se move no mais profundo leito dos oceanos;
O Ser-Tempo tem três cabeças e oito braços;
O Ser-Tempo tem a altura de oito ou dezesseis pés;
O Ser-Tempo é um bastão de mestre (Hossu);
O Ser-Tempo é um pilar ou uma lanterna de pedra;
O Ser-Tempo é José ou Maria (ou tu ou eu);
O Ser-Tempo é a grande terra e os céus acima."

(Dogen Zenji)

Em seguida, uma adolescente chamada Nao, no Japão, se apresenta e nos conta que está escrevendo para um leitor imaginário sobre a vida dela em um café que imita os cafés parisienses onde garotas de programa japonesas entretêm clientes com variados fetiches, inclusive o cansado clichê de meninas usando o uniforme escolar Japonês. Imediatamente eu fui arrancada da minha cadeira confortável pela escrita de Nao Yasutani, que apesar de estar no Japão, escreve em Inglês. Ela se apresenta e conta que morou dos três anos de idade até a adolescência em Sunnyvale, uma cidade classe média alta do vale do Silício na California, quando seu pai era um programador muito bem pago. Nao leva-me para o centro barulhento de Tokyo, e fala-me que ela está nesse falso café francês escrevendo em um diário que foi feito com capa do livro “Em Busca do tempo Perdido” de Marcel Proust – parece que um dos artesanatos vendidos em Tokyo são cadernos com folhas em branco feitos de livros clássicos que tem suas folhas arrancadas e suas capas aproveitadas. Nao diz que vai escrever a estória da bisavó dela, Jiko Ysutani, de 104 anos que é monja zen-budista, mas que antes foi escritora e feminista militante.

Uma pausa e um novo trajeto é apresentado nesta viagem. Agora eu estou na costa canadense com uma escritora chamada Ruth que mora com seu namorado Oliver e o gato Pesto em uma remota ilha. Ruth ao caminhar pela praia após uma forte tempestade, encontra, no meio das algas e outros dejetos do mar, um saco plástico bem embalado e dentro uma lancheira da Hello Kitty. Distraidamente curiosa, Ruth leva o saco para casa para jogar no lixo, mas seu marido abre o saco e descobre que dentro da lancheira há o livro “Em Busca do tempo Perdido” de Proust, um outro saco com cartas escritas em Francês e um relógio masculino antigo de pulso, o qual você precisa dar corda para funcionar. Ao abrir o livro de Proust, Ruth se depara com páginas escritas a mão com caneta de tinta gel lilás e com a primeira frase sendo: “Oi! Eu me chamo Nao.”

Pronto, daí em diante a viagem intensifica. Fiquei transitando entre o diário de Nao e as reflexões de Ruth. Cada uma levando-me à lugares graciosos e profundamente dolorosos, ao mesmo tempo. Nao conta da perda do emprego do pai e como a família foi arremessada à pobreza e obrigada a retornar ao Japão; de como ela chega a um país que é completamente estranho para ela, onde ela não fala a língua, onde ela se sente estrangeira, e onde ela sofre os mais cruéis atos de pérfida maldade (bullying) feitos pelos seus colegas e professor. Nao apresenta-me um Japão que eu não sabia que existia: cheio de adolescentes violentos, estressados, e uma sociedade fortemente enrijecida, xenófoba e machista.

Nao também conta sobre a cultura do suicídio no Japão que envolve diversas gerações de sua própria família, sobre as missões suicidas durante a guerra mundial, sobre depressão, mas também sobre a felicidade que podemos ter quando mergulhamos em meditação e nos dedicamos a nos conhecer.

Ruth, por outro lado, nos conta das dificuldades de cuidar de pais idosos e com Alzheimer, da difícil arte de manter um relacionamento amoroso entre artistas e fora das grandes cidades, do bloqueio criativo sofrido por artistas, das escolhas feministas. Cada uma nos leva a grandes passeios pela alma humana.

Incluído no pacote de viagem estão também os momentos de profundas meditações com a sabedoria zen-budista da velha Jiko, que com 104 anos diz que ainda não sabe nada.

O encontro físico de Ruth e Nao nunca aconteceu. Aliás, Ruth não tem certeza se Nao e sua família existiram, e Nao não sabe se um leitor imaginário encontrou o seu diário que ela tentou salvar do tsunami de 2011. Mas se há algo que a mecânica quântica nos faz especular, é sobre a existência de mundos paralelos. Se esticarmos a mão podemos alcançar alguém do outro lado do mundo. Já tentou?

O livro é uma viagem linda, emocionante, comovente, brutal e regeneradora. Foi ganhados de vários prêmios literários em 2014. A dica está dada para quem estiver a fim de embarcar nessa viagem sobre “A Terra Inteira e o Céu Infinito,” sem medo e sem coragem, apenas com o seu tempo de ser.

 

"Não pensem no tempo como algo que simplesmente voa e passa. Não compreendam o 'passar' como a única função do tempo. Se fosse verdade que o tempo simplesmente voa e passa, então existiria uma separação entre vocês e o tempo. Portanto, se vocês compreendem o tempo como algo que apenas passa, nunca serão capazes de entender o ser-tempo. 
Para captar verdadeiramente a ideia, pensem que todas as criaturas que existem no mundo estão ligadas entre si como momentos no tempo, e ao mesmo tempo existem como momentos de tempos individuais. Porque todos os momentos são o ser-tempo, e eles são o seu tempo de ser."
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Mais informações:

Titulo: A Terra Inteira e o Céu Infinito

Autor: Ruth Ozeki

Editora: Casa da Palavra

Páginas: 464

Ano: 2014 

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