Uma Declaração Feminista.
u não esperava, não contava com o tempo livre. Mas de repente meu filho foi brincar e dormir na casa de uma amiguinha, meu marido tinha um jantar par ir com os nerds, e eu tinha tempo só meu. Meu impulso é ver os filmes que estão em cartaz e me preparar para passar duas horas no escuro do cinema comendo chocolate. E fui isso que me preparei para fazer. Saí de casa com antecedência para não ter pressa em dirigir no final de tarde bonita do verão do hemisfério norte.
Para sair da garagem da minha casa, um antigo prédio construído por volta de 1920, eu preciso dar ré com cuidado, pois a minha casa está de frente para uma avenida com trafego em dois sentidos. Engato a ré e olho para a direita. Vários carros vem daquele sentido. Olho para a esquerda, dois carros vindo dessa direção. Não tenho pressa, espero. Olho novamente para a direita depois que os vários carros passaram. Um carro se aproxima devagar. Olho para a esquerda, agora vários carros vem dessa direção. Não há pressa, penso. Espero. Olho para a direita, e está livre de carros. Olho para a esquerda, só há um carro preto se aproximando. O carro preto passa. Olho para os dois lados, confirmo a não existência de carros se aproximando. Dou ré para atravessar a rua e seguir no sentido de subida. Ouço buzina alucinante atrás de mim. Ouço barulho de pneus freando em asfalto quente. Paraliso. Um carro em grande velocidade apareceu na esquerda. Ele desviou da traseira do meu carro e o motorista indignado buzina e gesticula para mim. Eu lhe dei um cotoco, aquele gesto instintivo com os dedos nas horas de raiva. “Que doidaço!” falo para ninguém. Respiro novamente e sigo devagar. Paro para dar passagem para um outro carro logo a frente.
Na encruzilhada das ruas, o sinal fica vermelho. O motorista indignado está na frente do carro para o qual eu dei passagem. Ele me procura pelo retrovisor. Ainda gesticula. De repente, ele abre a porta do carro e caminha na minha direção. Eu o reconheço! Ele faz yoga comigo! Ele se aproxima de óculos escuro. Fico feliz que é meu vizinho e parceiro de yoga Fred. Tenho certeza que ele vai se desculpar comigo, penso. Oh meu deus, eu preciso me desculpar com ele pelo cotoco que dei pra ele; que vergonha! Meus pensamentos são rápidos e nervosos. Eu abaixo os vidros do carro com sorriso. Ele grita, “Você não olha quando dirige! Você olha? Você olhou? God, você quase me matou...” Eu ainda perplexa com a reação dele, sorrindo nervosa falo “Oi Fred, sou eu. Tudo bem? ... Olhei sim. Você não estava lá...” Ele não ouve. Ele interrompe, em tom patriarcal de dono-da-razão furioso “Se você não olha você não deve dirigir. Você deve saber o básico antes de pegar o carro.” Virou-se, caminhou de volta para o seu carro como se ele tivesse cumprido o papel dele de ‘bom cidadão’. O sinal ficou verde e tomamos rumos diferentes.
Tomei a decisão de não deixar esse triste episódio estragar meu cinema. Mas sabia que teria que fazer algo com o sentimento que tal erupção me causou.
Esse homem que me atacou com sua irritação, mora a três quarteirões da minha casa. Pelo menos por um ano e meio, nós nos encontramos duas vezes por semana nas aulas de yoga. No início, nós não nos cumprimentávamos, depois passamos a conversar amenidades no final da aula. Recentemente, sempre que a professora passava poses para serem executadas com a ajuda de um parceiro, ele se voluntariava imediatamente para ser meu parceiro. Em um retiro de yoga de um final de semana no mês passado, ele participou junto com a esposa e a filha adolescente. Lá, no círculo de conversa inicial, ele anunciou que seu objetivo era ficar mais leve com a necessidade de controle que ele tinha. Achei demagógica a fala, mas conseguia ver nobreza no esforço dele. Afinal estávamos em um retiro de prática de yoga e sentia que precisava ser empática e olhar o outro sem julgamento. Lembro que culpei-me imediatamente por tê-lo julgado na minha mente, passei o resto do retiro exercitando o não-julgamento. Havia nobreza também no meu esforço.
Como eu vou agora fazer a pose do ‘cachorro olhando pra baixo’ com um homem que acha que nem o básico do conhecimento de dirigir um carro eu sabia? Será que ele faria esse comentário se fosse um homem dirigindo o carro? Minha intuição diz que não. A reação dele falou do seu machismo. A reação dele falou que eu, como mulher, sou um recipiente vazio que precisa ser penetrada e preenchida com a “sabedoria” dele. No discurso indignado dele, ele tem algo que eu não tenho. Ou melhor, ele se apoia na ilusão de que ele tem algo que o empodera e que a mim falta. O problema dessa alegoria machista da minha “falta”, é que inteligência não está na genitália.
Percebi com este incidente, que eu estou cansada da razão pura-&-branca do macho! Grande parte da minha vida eu duvidei da minha própria razão. Incontáveis vezes eu concedi às imposições de motivos e causas outorgadas pela opressão do dono-da-razão. E o dono da razão tinha um sexo definido (assim como classe, endereço, escolaridade, profissão, nacionalidade). Quantas mulheres diariamente, a cada instante de vida, são informadas que à elas não pertence a verdade, nem mesmos as que elas testemunham nas suas próprias vidas?
Eu tenho o privilégio de elaborar uma crítica a este venenoso machismo, consigo escrever e comunicar minha repulsa. Mas quantas mulheres são silenciadas neste planeta pelo universo arrogante machista? Apesar de termos um planeta no qual a maioria da população é feminina (52%), o grupo de mulheres que consegue falar, escrever, expressar sua voz é ainda minguado, esquálido. Por esse motivo, nós nunca teremos uma verdadeira estatística da violência sofrida pelas mulheres, e também pelos homens fora do círculo de poder, pois inúmeras violências e abusos ocorrem sem ocorrências registradas, sem legitimação da voz de quem sofre.
Ser extirpada da minha perspectiva, da minha razão, da minha versão da estória acontecida é um golpe à minha igualdade de participação, de expressão, de inteligência. Se lutar por essa igualdade é feminismo. Eu sou feminista.
Feminismo não é um rótulo de classificação das fêmeas, o qual foi histórica e culturalmente embebido de imagens misóginas de que ser feminista é para as mulheres malogradas, mal amadas, mal humoradas. Feminismo, pelo menos para mim, não é um rótulo. Feminismo é um contexto que geramos. Uma declaração. Uma consciência. Uma atenção. Uma escolha intencional de um jeito de pensarmos o nosso participar no mundo. Assim como yoga, feminismo é para todos, homens e mulheres, meninos e meninas.
Eu estou esperançosa de encontrar com meu vizinho nas próximas aulas de yoga. Talvez possamos nos apoiar mutualmente na pose da “árvore” para encontrarmos o nosso balanço ao vermos nossas raízes plantadas no mesmo solo e nossos galhos espalhando-se, florescendo, sem as sórdidas e ainda vivas barreiras dos podres poderes.